Hillary Rodham Clinton

Ainda antes de vencer as eleições, Hillary Clinton já fez história: é a primeira mulher candidata à presidência dos EUA, por um dos dois grandes partidos do país.

As eleições presidenciais norte-americanas são sempre um acontecimento mundial. Mas as eleições do 45º ocupante da Casa Branca que terão lugar na terça-feira, 8 de novembro, são ainda mais especiais. Desde logo, pelo candidato do Partido Republicano que é tudo… menos um republicano. Donald Trump, ou simplesmente The Donald, arrebatou um partido desnorteado face à sua tradição e história. É difícil compreender a angústia sentida por muitos Republicanos que olham para Trump como se fosse um extraterrestre. Mas não é. The Donald tem sido capaz de não só sintonizar a frustração do eleitorado WASP face ao suposto benefício de uma economia global mas também de aproveitar uma divisão do partido entre o mainstream e a sua ala mais conservadora. Este debate interno tem sido preconizado por candidatos a candidatos como Jeb Bush e Ted Cruz, muitas vezes com uma virulência assustadora. Aliás, em bom rigor, só mesmo a figura de Donald Trump para nos fazer esquecer que o segundo candidato mais votado foi o senador do Texas, Ted Cruz. O Partido Republicano atravessa uma crise profunda que tem (e continuará a ter) consequências sistémicas no sistema político norte-americano. O presidente George W. Bush resumiu bem este sentimento de crise, quase de luta pela sobrevivência política, quando afirmou em abril: «Tenho receio de que possa ter sido o último presidente Republicano.»


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Do lado democrata, temos também uma novidade, mas bem diferente. O partido do presidente Barack Obama quer ser mais uma vez pioneiro e eleger a primeira mulher presidente dos EUA: Hillary Rodham Clinton. Depois de umas primárias atribuladas em que Bernie Sanders apelou aos descontentes à esquerda, o Partido Democrata vai tentar dar mais um passo na sua agenda progressista. É claro que nem sempre foi assim e a agenda progressista foi tendo defensores de vários campos ao longo da sua afirmação nacional. Mas, se tivéssemos que escolher um momento, teríamos de recuar até 1917. Tudo começou verdadeiramente com Jeannette Rankin, uma pioneira do Montana, do Partido Republicano (na altura com a agenda progressista). Jeannette conseguiu o que na altura era impensável: ser eleita para a Câmara dos Representantes. Foi um feito histórico e aquando da sua eleição proferiu a célebre frase: «Eu posso ser a primeira mulher eleita para o Congresso mas não serei de certeza a última.» Jeannette foi de tal modo pioneira que chegou à Câmara dos Representante antes de a 19ª Emenda constitucional ter sido ratificada, em 1920, alargando o sufrágio às mulheres. É claro que este foi uma bandeira sua pela qual lutou arduamente tal como as suas camaradas sufragistas. Assim, o direito de voto das mulheres chegou primeiro aos EUA do que a outras democracias como a francesa, que o fez em 1944.

Então como explicar que apesar deste passado vanguardista só passados quase cem anos é que os EUA têm a primeira candidata à Casa Branca? Em bom rigor, a discussão à volta de Hillary Clinton deve ser contextualizada naquilo a que Anne-Marie Slaughter apelidou leadership gap, num artigo publicado na revista The Atlantic com um título revelador «Why Women Can’t Have It All». No fundo, o leadership gap traduz-se na falta de representação política no feminino. Sem dúvida que é nas democracias liberais ocidentais (Israel incluído) que, do ponto de vista geral, os direitos das mulheres são mais bem defendidos, sobretudo quando compararmos com outras regiões no mundo. As «suspeitas do costume» são, entre outras, Golda Meir, Margaret Thatcher, Angela Merkel e agora Theresa May.

Mas, na verdade, a representação das mulheres na política anda muito longe da igualdade. O debate sobre como tentar ultrapassar este gap não é consensual. E (simplificando muito) há quem defenda a imposição de quotas e há quem prefira apostar no mérito. Para uns, as barreiras invisíveis, ou na expressão do debate norte-americano os glass ceilings, impedem que o mérito seja recompensado. Para os segundos, a quantidade (em detrimento da qualidade) pode ser contraproducente. Mais ainda, há quem considere que o que explica este desequilíbrio é a difícil articulação da vida profissional com a vida familiar e para outros o fator determinante é a mudança lenta do mundo da política, uma área tradicionalmente masculina, e as suas resistências. É a estes «tetos de vidro» que Hillary tem aludido. Por exemplo, olhando para o Senado temos apenas dezoito senadoras em cem.


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Este é um debate importante para compreendermos a relevância desta eleição norte-americana. A possibilidade de Hillary Clinton ser a próxima presidente dos EUA é a «cereja no topo do bolo» de um percurso que teve marcos notáveis ao longo das últimas décadas. Um dos ídolos de Hillary foi justamente uma mulher que marcou de forma profunda a América: Eleanor Roosevelt. Aliás, esta é uma comparação muitas vezes feita até pelos seus maridos. Eleanor foi a mulher (e depois a viúva) do grande Franklin Delano Roosevelt, um dos presidentes mais marcantes da história dos EUA e do mundo.

Tal como Hillary, durante o tempo em que foi primeira-dama, Eleanor sempre exprimiu o que pensava sobre questões importantes. Na sua coluna diária nunca deixou de chamar a atenção para as injustiças e as violações de direitos humanos tais como a discriminação racial e os direitos das mulheres. Pela sua tenacidade e profunda convicção foi escolhida pelo presidente Truman para liderar a comitiva norte-americana no projeto a que mais tarde se deu o nome de Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada a 10 de dezembro de 1948.

Mas há mais pioneiras que foram importantes neste longo caminho percorrido pelas mulheres e a sua representação na política. Em 1984, o Partido Democrata optou por Geraldine Ferraro como candidata a vice-presidente juntamente com Walter Mondale. A primeira secretária de Estado foi Madeleine Albright e a segunda foi Condoleeza Rice. Segundo o Pew Research Center, atualmente cerca de um terço dos atuais embaixadores dos EUA são mulheres. Igualmente importante foi Sandra Day O’Connor que foi a primeira a chegar ao Supremo Tribunal dos EUA (hoje em dia são três de oito lugares).

Mas será Hillary «a mulher certa » para estilhaçar o «teto de vidro» da Casa Branca? Uma das certezas em relação a esta candidata é que quase ninguém lhe é indiferente. Há quem a deteste e quem a idolatre.

Mas por entre elogios e insultos há duas críticas que são recorrentes. É Hillary competente? Ou chegou a este patamar «apenas» porque é Clinton? Vamos à primeira. Hillary traz consigo uma experiência invejável. Estamos a falar de alguém que foi senadora pelo Estado de Nova Iorque e secretária de Estado.

Ao longo destes anos, Hillary esteve sempre no foco das atenções mediáticas e políticas. A sua capacidade de trabalho é reconhecida e, em particular, a avaliação do seu mandato enquanto secretária de Estado é muito positiva. Há muitos aspetos da sua mundivisão que poderíamos destacar mas talvez a «doutrina Hillary» seja o mais inovador. Esta doutrina é muito bem analisada (e dá nome ao título do livro) por Valerie Hudson e Patricia Leidl, uma académica e uma jornalista. As autoras identificam três pilares a esta doutrina: «direitos das mulheres são direitos humanos», «a violação em massa e sistemática desses direitos enquanto ameaças à segurança nacional dos EUA», e a importância do poder militar.

Em relação ao primeiro pilar podemos encontrar estas suas palavras no discurso de 1995, em Beijing, que fez na conferência internacional sobre direitos das mulheres. Vale a pena ser lido e relido. Hillary, na qualidade de primeira-dama, afirmou inequivocamente a importância dos direitos humanos das mulheres. Em 1995, poucos anos depois do fim da Guerra Fria, as palavras de Hillary ecoaram além-fronteiras. A inspiração e o entusiasmo são cativantes. O segundo pilar relaciona a violação desses direitos com ameaças à segurança nacional dos EUA. Há, de facto, uma «sobreposição» entre grupos radicais e a sua conceção do lugar submisso e ignorante que as mulheres devem ocupar nas sociedades que «eles» dirigem. Uma das situações que para Hillary, num discurso proferido, em 2013, na 4ª Cimeira Anual Mulheres no Mundo, melhor exemplifica esta «sobreposição» é o exemplo de Malala Yousafzai. Porque é que grupos como os talibãs se dão a tanto trabalho e a tanta violência para impedirem o acesso à educação no feminino? Para quem tenha dúvidas sobre a relação entre estes dois «assuntos», que parecem tão distantes, vale a pena ver a resposta de Malala a Jon Stewart no seu Daily Show (uma das raras vezes em que Stewart fica sem palavras) sobre a importância da instrução no feminino. Por último, Hillary Clinton tem ao longo da sua vida expresso, de forma clara, o peso que as Forças Armadas ocupam na projeção do poder norte-americano. Dito de outra forma, a sua política externa não é soft e a «doutrina Hillary não é de todo pacifista». Estas suas posições foram sedimentadas ao longo da sua atuação política e são uma constante. Não podemos esquecer-nos que enquanto senadora esteve no Comité das Forças Armadas.

E quanto às críticas (umas mais elegantes do que outras) que reduzem Hillary Clinton ao peso do sobrenome do seu marido? Sem dúvida que o sobrenome Clinton é importante. Mas no caso de Hillary é «apenas a ponta do icebergue». Pelo seu percurso e pela sua vida profissional antes de ser primeira-dama e pela sua atuação política depois de ter saído da Casa Branca em lugares tão exigentes quanto o senado e o departamento de Estado. Vale a pena ler o seu discurso de fim de curso em Wellesley College, em 1969. Há muitos aspetos que podemos destacar mas o objetivo da «libertação humana» e a importância da educação estão lá em pleno. Mas o sobrenome Clinton é uma faca de dois gumes: a comparação com o seu marido que foi um presidente carismático e um comunicador nato. Tal como Obama. Mas talvez a resposta à pergunta possa ser invertida com outra questão. Tendo em conta a importância do apoio e da gestão de Hillary na carreira política do seu marido, primeiro no estado de Arkansas e depois na Casa Branca, poderíamos então perguntar: «Teria Bill Clinton chegado onde chegou se não fosse Hillary?»

 

* RAQUEL VAZ-PINTO
Nasceu em Luanda, em 1973. É investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa e professora de Estudos Asiáticos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da mesma universidade. Foi presidente da Associação Portuguesa de Ciência Política entre 2012 e 2016. Os seus artigos têm sido publicados, entre outros, no Brazilian Journal of International Politics e The American Interest. É autora do ensaio Os Portugueses e o Mundo publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos e dos livros A Grande Muralha e o Legado de Tiananmen, a China e os Direitos Humanos e Para Lá do Relvado, o que podemos aprender com o futebol, ambos editados pela Tinta da China. É Presidente do Conselho Editorial do IDL-Instituto Amaro da Costa e membro da Comissão Política Nacional do CDS. É casada e vive no Alentejo.


** Este artigo deriva da investigação levada a cabo por Bernardo Pires de Lima e Raquel Vaz-Pinto para o livro sobre Hillary Clinton a ser lançado no fim de setembro pela Tinta da China.