Guterres não é português

Notícias Magazine

Só uma hecatombe impedirá agora António Guterres de ser eleito secretário-geral das Nações Unidas. O que o antigo primeiro-ministro português conseguiu – o consenso do Conselho de Segurança – não é nada menos do que uma façanha. Primeiro, porque o mundo em geral e Ban Ki-Moon em particular clamavam por um candidato do sexo feminino e do leste da Europa, requisitos que Guterres claramente não cumpre. Depois porque havia uma desvantagem que era menos evidente e mais perigosa: os dez anos que passou à frente do Alto Comissariado Para os Refugiados.

Os últimos anos tornaram as questões dos refugiados na tragédia incontornável do nosso tempo. Existem hoje 21,3 milhões de pessoas que tiveram de abandonar as suas casas e as suas vidas para não serem mortas. Deixem-me repetir o número: 21,3 milhões em fuga. Como noticiava ontem o Público, 86 por cento são acolhidas em países pobres ou muito pobres. Quando, há quatro anos, milhões começaram a fugir da Síria e a atravessar o Mediterrâneo em direção à Europa, o mundo reparou finalmente na catástrofe.

Tive a oportunidade de perceber Guterres em 2012. Eu estava no norte do Iraque, onde todos os dias desaguavam milhares de refugiados sírios em desespero. Quando visitei o campo de Domeez, em julho, o registo era assustador. A estrutura tinha lugar para dez mil almas, mas os ocupantes eram já 50 mil – e todos os dias chegavam em média mil novas pessoas. Não havia tendas, nem cobertores, nem água para toda a gente. Lembro-me em particular de três putos de seis anos que fugiram de Damasco quando o orfanato onde viviam foi bombardeado. Atravessaram uma nação em guerra, passaram a fronteira à socapa, cumpriram uma caminhada de mais de 80 quilómetros e chegaram ali, onde nada os esperava. Um deles usava uma camisola com um retrato de Luís Figo.

Dias depois de ter estado em Domeez, Guterres visitou o mesmo lugar e declarou estado de emergência humanitária. A seguir piorou tudo: o Daesh ocupou a zona e o abrigo foi desmantelado. Aquela gente fugiu para onde podia e, caramba, não podia fugir para lado nenhum. Quando uma vaga começou a atravessar e a morrer no Mediterrâneo, o Alto Comissário tinha de levantar a voz. E levantou. Acusou os Estados Unidos e a Europa da sua insensibilidade. Apontou o dedo a Moscovo, a Pequim e a Riade pelo silêncio e pela conveniência. E, mesmo assim, estes países votaram agora nele. Então, sim, temos direito a estar orgulhosos de Guterres.

Mas desculpem o anticlimáx: eu não estou por um secretário-geral da ONU português, nem europeu, nem lusófono. Prefiro um tipo capaz de guardar três putos órfãos que atravessam um país em guerra. Prefiro um homem que aponte o dedo à nossa europeia soberba. E Guterres podia ser espanhol, podia ser do Burkina Faso, podia ser sudanês, iemenita, sírio ou guatemalteco. Calha ser português e calha ser um tipo decente. E agora, que vai ocupar o cargo que nunca nenhum português ocupou, interessa tudo menos a sua nacionalidade. Ou talvez interesse. Se ele continuar a ser sudanês, iemenita, sírio e guatemalteco.