Exemplo de crueldade total: enjoar como uma pescada

Notícias Magazine

A ideia do Titanic a afundar-se passou-me brevemente pela cabeça quando li que quatro grandes paquetes de cruzeiro vão ter dentro espetáculos do Cirque du Soleil e museus de arte moderna e contemporânea, com obras cedidas por grandes instituições. Afastei logo o mau pensamento, até porque o Titanic a meia haste era a imagem que no catecismo não sei de que ano ilustrava o terrível pecado da Soberba: construir um navio como aquele era uma atitude de total arrogância, de desafio à autoridade divina, só ela capaz de criar portentos extraordinários. Vai daí, porta-aviões ao fundo, perdão, paquete ao fundo. Já havia um antecedente bíblico, a Torre de Babel, outra tentativa de não só construir um edifício que chegaria ao céu como a de ter uma única língua que permitia que todos se entendessem sem necessidade de tradutor. Grande lata.

Muito haveria a dizer sobre a soberba dos minúsculos humanos e as grandes realizações do engenho e da arte, sobretudo nestes dias em que tanta celeuma – palavra entre todas adequada para descrever a vozearia – provocada pela proposta da Câmara Municipal de Lisboa de melhorar a 2ª Circular, aquela estrada que, ao contrário do que eu alguma vez poderia imaginar, merece ser proposta à UNESCO como património da humanidade, quiçá património imaterial. Afinal, já lá perdemos tantas horas que conhecemos aquilo em pormenor: o arbusto que dá flores amarelas ali por alturas do radar, aquele agradável troço onde esperámos que fosse desfeito um acidente, enfim, passeios aprazíveis que merecem ser recordados. Mexer na 2ª Circular? Aí está outra atitude de total soberba! Numa estrada assim não se mexe, deixem-na permanecer intacta até que as futuras gerações possam apreciar como o cidadão dos séculos xx e início do xxi se martirizavam.

Mas o que aqui me traz a esta página hoje é a ideia de ter o Cirque du Soleil e um museu a bordo de um navio. Acho uma ideia soberba, vá lá, fora de brincadeiras, sumptuosa. Estes paquetes terão capacidade para cinco a seis mil passageiros, e mais ou menos dois mil – a tripulação. Mete respeito. Milhares de pessoas que podem ver obras de arte e espetáculos, predispostas a admirar o desconhecido, substituídas por outros regularmente, de cruzeiro para cruzeiro. Números superiores aos de muitos museus.

Se descontar as idas a Cacilhas, a minha primeira viagem sobre as águas foi no Vera Cruz, à época recrutado ao Estado para transportar tropas. Coisas dos anos 1960. Fiquei a saber que há umas coisas no meu ouvido interno (otólitos, caros senhores) que não apreciam a experiência marítima. Numa palavra: enjoei. Enjoei como uma pescada, expressão absurda porque suponho que as pescadas não enjoam no mar, ou então são cruelmente infelizes. Não foi uma travessia totalmente desgraçada: lembro- me de nadar na piscina com uma boia daquelas brancas e vermelhas com cordas, um pouco áspera mas segura. E lembro-me de chegar a Lisboa, o estuário deslumbrante, e a família à espera no cais.

Diz-me aqui ao lado um amigo que nunca faria um cruzeiro pois não suporta a ideia de estar rodeado de pessoas a que não podia fugir, sempre as mesmas, dia após dia. Também não é coisa que me seduza, mas por causa do enjoo, é bom de ver, e porque me parece tudo demasiado organizadinho. E, lá está, vem-me à cabeça o Titanic em pleno catecismo, perdão, em pleno Atlântico. Com um outro pesadelo, mais recente: e se o Cirque du Soleil se punha a fazer acrobacias ao som daquela música da Céline Dion?

[Publicado originalmente na edição de 7 de fevereiro de 2016]