Eusébio: show de bola

Eusébio, Um Hino ao Futebol
Eusébio, Um Hino ao Futebol

A vida do Pantera Negra dava um filme, um documentário, um hino. Tudo menos um musical, supúnhamos. Até vermos este Eusébio, Um Hino ao Futebol subir ao Coliseu dos Recreios de Lisboa no próximo dia 6, num livre direto à vida do maior jogador português de todos os tempos. Segue-se o Coliseu do Porto em maio.

Ao sinal de partida, corria como a cauda de um cometa. Nem nervos nem dor. Apenas aquele rugido sob a pele a invadi-lo por inteiro, fazendo que as pernas lhe saíssem disparadas. Eusébio voava, fintava, gingava, e ninguém em campo sabia precisar se o que vinha ao seu encontro era um comboio descarrilado ou um felino a preparar o próximo salto. «Com ele, nada acontecia por acaso. Era um líder nato, um homem especial. Tinha tanta vontade que levava a equipa atrás dele», conta Ana Rangel, autora do texto do musical Eusébio, Um Hino ao Futebol – em cena no Coliseu de Lisboa de 6 a 17 de abril, e no do Porto entre 13 e 15 de maio.

E não, diz, não é um género nada estranho para se contar esta história. «Um musical é um canal direto para as emoções e a vida dele foi um somatório de episódios incríveis. Não havia outra forma de fazê-lo.» O próprio Eusébio afirmava que seria bailarino, um dos bons, caso a vida não o tivesse feito jogador de futebol. «Adorava música: Aretha Franklin, Ray Charles… A soul inspirava-o», confirma a encenadora Matilde Trocado, que por isso não estranha o formato arrojado.

Precisavam de canções, representação e dança para homenagear o avançado mais temido do futebol nacional. O Pantera Negra, veloz e certeiro a definir as jogadas, violento no remate (os guarda-redes viam-se aflitos para o defenderem). O Rei. «Acho sempre muito engraçado quando uma pessoa, neste caso um português, vai tão longe arrastando consigo tanta gente. No fundo, ele levou o país lá para fora, não foi? Mas vamos a ver e era simples, muito humilde. Esteve no topo sem perder a humanidade.»

Nascido em Lourenço Marques, atual Maputo, a 25 de janeiro de 1942, foi em Mafalala, um dos bairros mais pobres, que Eusébio da Silva Ferreira primeiro impôs o seu futebol. A mãe, Dona Elisa, zangava-se ao ver o filho alheado da escola. Tinha de estudar, como podia vir a ser alguém sem as aulas? Mas ele preferia cumprir os castigos. Aquele bicho no corpo só acalmava com bola.

«É dos maiores jogadores de sempre, conhecemo-lo enquanto glória após ter vindo para Portugal aos 17 anos, mas perdeu-se um bocadinho a parte do homem bom que também foi», sublinha Ana Rangel. Como quando jogava contra o União de Almeirim para a Taça de Portugal, em 1969, pelo Benfica, e falhou em consciência um dos três penáltis da sua carreira.

«O pai do guarda-redes estava a vê-lo na Luz e Eusébio avisou-o que chutaria para a direita, ele que defendesse.» Ainda antes desse episódio, a jogar pela seleção em Wembley em 1961, ficou na mira do selecionador inglês Walter Winterbottom, irritado com o defesa encarregado de o marcar sempre que o jovem português ganhava a bola: «Flowers, look at the Black Panther!» Cuidado com o Pantera Negra, um grito que havia de repetir-se ao infinito nos estádios de todo o mundo. Em 1962, frente ao Real Madrid, marcou dois dos cinco golos que sagraram o Benfica bicampeão na final da Taça dos Campeões Europeus, mas nem quis saber do troféu. «Tinha pedido ao Di Stéfano, seu ídolo de sempre, que lhe desse a camisola no final. Recebeu-a e esse foi o seu verdadeiro prémio. Há uma foto famosa dele a rir, com a camisola guardada nos calções para não lha roubarem.»

Destes e outros marcos dá conta a personagem do avô no musical – um papel que a produtora Plano 6 não revela a quem será atribuído agora que João Ricardo, o ator inicialmente convidado, deixou o elenco por questões de agenda. O neto faz perguntas, os adeptos na bancada também, e a todos o avô recorda o homem capaz de marcar nove golos no Mundial de 1966 em Inglaterra – o melhor atleta da competição –, tornando-se um rival digno de Pelé. Operado seis vezes ao joelho direito e uma ao esquerdo, recebeu a Bota de Ouro em 1968 por 43 golos, e de novo em 1973 por mais 40. No Euro 2004, com o ímpeto de sempre, instigou Ricardo a defender sem luvas o penálti de Vassell e a marcar o golo que eliminou a Inglaterra das meias-finais. «Aquilo foi ele, a força dele, o motor que era», afirma Ana Rangel. O seu legado vive de inspirar as novas gerações. «Eusébio era muito maior do que a carreira que teve.»

Eusébio, Um Hino ao Futebol

SOFIA ESCOBAR
CANTORA DOS ANOS 1960 E ADEPTA NA BANCADA

À partida, nunca lhe passaria pela cabeça pôr de pé um tema destes como musical – e se ela gosta de musicais e sabe fazê-los, com o seu vozeirão inconfundível e aspeto de fada. Já foi Christine Daaé em O Fantasma da Ópera, no West End em Londres. Fez de Maria em West Side Story e os críticos caíram-lhe aos pés. Em Eusébio, Um Hino ao Futebol, será tanto uma cantora dos anos 1960, num momento de rádio na Emissora Nacional, como uma portuguesa que vive em Toronto e vem a Portugal assistir a um jogo do Benfica, juntamente com outros adeptos que recordam o Rei nas bancadas.
«A verdade é que faz todo o sentido, com cenas de grande emoção mesmo para quem, como eu, não liga a futebol», aplaude Sofia Escobar, a adorar a experiência. «Há alturas em que me sinto tão emocionada que só me apetece chorar com a história de vida desta pessoa especial.» Tocou-a profundamente o tal penálti que falhou para não rebaixar o guarda-redes aos olhos do pai. «Ninguém faz isso. Ninguém! Era de um fair play extraordinário.» Partiu do zero, chegou ao topo, e também essa luta só pode inspirar-nos. «Nunca nada é impossível. Pode ser duro, exigir muito sacrifício, mas se lutarmos por aquilo que queremos, se persistirmos, chegamos lá.» Eusébio é o maior exemplo.

CLÁUDIA SEMEDO
MÃE «EMPRESTADA» E ADEPTA NA BANCADA

É mulher de ceder facilmente a impulsos sentimentais, benfiquista das que usam cachecol ao pescoço. Convidarem-na para fazer de mãe de Eusébio só podia estar escrito nas estrelas. «Tive oportunidade de conhecê-lo, homenageei-o em vida na festa dos seus 70 anos na Luz. Mas estou ainda mais ligada a ele agora que sei a dor que a mãe deve ter sentido ao deixá-lo vir para Portugal», admite Cláudia Semedo. Na peça, nenhum ator faz de Eusébio – soaria a falso. Apenas uma criança aparece de vez em quando sem falar, atenta ao desenrolar da sua vida, e à atriz parece-lhe que a metáfora encaixa na singeleza do homem. «Há uma história deliciosa dele em miúdo que mostra bem a fibra, o coração, o caráter, a verticalidade. Não precisamos de o ver no palco para sentir isso.» Recusado pelo Desportivo de Lourenço Marques na adolescência, por ser franzino, Eusébio fez testes no Sporting de Lourenço Marques e quiseram-no na equipa. «Tinha ido com outros rapazes do bairro e avisou logo que ou ficavam todos ou não ficava nenhum.» Ficaram todos. Cláudia está a falar, a lembrar-se dele, e arrepia-se. «Acho que o espetáculo vai provocar isso nas pessoas, é muito forte. E então quando a Sofia Escobar abrir a boca para cantar o hino… Meu Deus!»

DIOGO AMARAL
LOCUTOR DE RÁDIO NA EMISSORA NACIONAL E ADEPTO

Se houve coisa que o Pantera Negra e o SLB de ambos lhe ensinaram vida fora – Diogo também é um benfiquista ferrenho – foi que a sorte protege os audazes. Em caso de dúvida, atiramo-nos de cabeça e questionamos depois. Se o empreendimento puder dar para o torto, apelamos à fé e atiramo-nos na mesma. Diogo Amaral nunca tinha feito um musical até à data, apesar de ter esse desejo há já uns tempos. Desconhecia se ia ser capaz de cantar e dançar como representa, se lhe daria o gozo que espera sempre dos novos projetos. A resposta é sim e sim. Ainda bem que saiu da zona de conforto. «Este é realmente um mar nunca antes navegado. Há uma atenção redobrada e cada ensaio é uma aprendizagem», justifica o ator, orgulhoso de homenagear assim Eusébio. «Tive o prazer de o conhecer ao vivo e a sua humildade era desconcertante. As minhas pesquisas para o musical só vieram confirmar a pessoa singular que era. Admiro-o mais a cada história que descubro sobre ele.» Diogo adora ir ver um bom jogo, o alvoroço no estádio. O pulsar. O sentido de pertença. «A vida é mesmo isto: arriscarmos.» O Pantera Negra testou-se até morrer, aos 74 anos. Diogo fê-lo ao encarnar os papéis do adepto curioso e do radialista na Emissora Nacional que lhe narra as glórias. «Este foi, de facto, o convite perfeito. Um musical de um herói como o Eusébio? Vamos a isso.»