Estar a pedi-las

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«As leis são como as meninas virgens: são para ser violadas.» Isto disse um homem conhecido até agora pela caraterística de ser adepto exuberante e exibicionista do Benfica mas que afinal tem profissão: é taxista. A frase saiu da boca dele mas não da cabeça dele, porque é uma daquelas coisas que de vez em quando aparecem e que, se ditas por alguém notório e amplificadas pela comunicação social ou pelas redes sociais, dão lugar a escândalo.

Com algumas variações, a expressão – chamemos-lhe assim – levou à demissão do espanhol José Manuel Castelao Bagaño de um cargo político relevante, em 2012, e deixou em maus lençóis o circunspeto professor brasileiro Fabio de Melo Azambuja, em 2015, que a usou como uma graçola numa aula de Direito da Pontíficia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em plena época de Twitter. Este último tinha um antecedente: o ex-presidente Getúlio Vargas terá comentado que «a Constituição é como as virgens, foi feita para ser violada», em data que não consegui confirmar, porque nem tudo aparece à superfície na internet e não tenho acesso fácil a arquivos de jornais brasileiros dos anos 1930 ou 1940.

A boçalidade é óbvia, e o mais provável é que o homem do bigode que a disse com um microfone e uma câmara de televisão à frente a ache perfeitamente banal. É até possível que nunca tenha parado para pensar no que aquela dupla idiotice aponta – a ideia de que as meninas virgens e as leis são comparáveis e ambas destinadas a ser violadas. O raciocínio (enfim, alguma coisa parecida com isso) será: já disse e ouvi isto tantas vezes e sem consequências que não percebo o problema, esta gente está a exagerar.

Mas é um problema. Não será tão horrível como as meninas obrigadas a casar-se no Irão, ou os três tiros que atingiram Malala, ou os assassínios de mulheres por tudo e por nada, para só apresentar algumas hipóteses de uma extensíssima lista de coisas de gravidade imensa que acontecem pelo mundo fora. É um problema, pelo facto em si e porque daqui a uns dias – talvez hoje mesmo – já não passa de uma graçola da qual o autor se vai até orgulhar. Afinal de contas, foi vedeta por umas horas, como quando foi até à porta da prisão de Évora levar uma bola de futebol e um cachecol do Benfica ao então preso mais conhecido do país, e imensamente mais do que nas sucessivas aparições a defender o clube de que é fanático.

Eu, que até nem tenho assim tantas razões de queixa de taxistas e não aderi ao conceito Uber/Cabify, fiquei enojada com o comportamento dos cabecilhas da operação anunciada como marcha lenta e que acabou por confirmar a antecipada ameaça de pancadaria. Sei que os taxistas não se comportam todos assim e não vou deixar de usar táxis por ter visto o que vi (embora tenha a certeza de que sairia imediatamente de um carro conduzido por um destes motoristas se o reconhecesse). E, já agora, também não vou deixar de torcer pelo Benfica. Mas do mesmo modo que é abominável a frase (ou a ideia) «ela estava a pedi-las» aplicada a uma vítima de violação, lembro-me de como no ano passado foi menorizada e ridicularizada a criminalização das propostas de teor sexual, fazendo crer que se legislava sobre os piropos mais inocentes. Gostava de saber que ninguém diz uma frase como aquela sem sofrer uma consequência.

[Publicado originalmente na edição de 16 de outubro de 2016]