Escolher como usar o tempo

Notícias Magazine

Há milhões e milhões de livros que não lerei porque o tempo de uma vida não é suficiente para chegar nem a uma ínfima parcela. Essa seria uma primeira razão para não ler, de forma nenhuma comprar, aquilo que já se percebeu que é uma aberração de uma mente mesquinha. Mas não é a única: recuso-me a ser parte de uma mistificação que servirá ao autor para seja lá o que ele quer e de um malabarismo editorial para ganhar dinheiro. Falo do vómito de Saraiva, mais um depois de tanta inanidade. Dá que pensar: este homem dirigiu anos a fio o principal e mais influente semanário português, e depois fundou e dirigiu um outro jornal, teve a confiança dos financiadores e administradores e opinou sobre questões políticas nacionais e internacionais. Bastam-me os comentários e excertos que por aí andam, já isso é demasiado.

Forçada a uma longa paragem por razões de saúde, pude ler, com fascínio, o volumoso e extraordinário romance Ver: Amor, de David Grossman, que a Dom Quixote publicou há dois anos. Já tinha começado mas precisava de tempo e calma para me envolver num dos mais belos e excecionais livros que até hoje li. Aproveitei também para finalmente ver o filme Cartas da Guerra, de Ivo M. Ferreira, e nem sei que palavras há para falar da emoção provocada por um passado tão recente, tão próximo, cheio de coisas que vivi, que conheci e que ouvi contar, cheio de coisas que nunca ninguém tinha contado assim. Senti a claustrofobia do confinamento a um espaço fechado sobre si mesmo e no entanto no meio de uma natureza esplendorosa. Senti a dor, o sem sentido, a perda dos parâmetros que fazem a nossa normalidade. Belíssimo filme, feito de um belíssimo livro em boa hora organizado pelas duas filhas de António Lobo Antunes e de Maria José Fonseca e Costa.

Como se relacionam estas obras? Uso a frase final do livro que David Grossman escreveu em 1983 e 1984, tão bem traduzido para português por Lúcia Liba Mucznik: «Pedimos tão pouco: que um homem possa viver neste mundo toda a sua vida, do nascimento à morte, sem saber o que é a guerra.» A guerra de que fala é o tempo dos nazis, o gueto de Varsóvia, um campo de concentração com câmaras de gás, os comboios cheios de pessoas que vão ser mortas, aquilo a que Hannah Arendt chamou a banalidade do mal. O tema já foi abordado de tantas maneiras, por tantos autores, mas nunca estará gasto nem totalmente revisto. Grossman escreve de uma forma completamente inovadora, interferindo no tempo e no espaço, e fala de responsabilidade, decisão, culpa, possibilidade de mudar a natureza das coisas. Fala de amor, de vida, de esperança, de criação artística, de beleza, de morte, de desespero, de sobrevivência.

E percebe-se como uma guerra assim – uma qualquer guerra – condiciona as gerações seguintes. Disso mesmo fala Grossman, do quotidiano em Israel nos anos 1950 e 1960, onde cresceu no meio de todos os medos, cautelas, incertezas, quando cada decisão era medida pela possibilidade de aquilo que se passou «lá» voltar um dia a destruir o quotidiano.

O tempo não chega para ler todos os livros que gostaria de conhecer, nem para ver os filmes, as peças de teatro e de dança, ouvir as músicas, ver as obras de arte que há para ver. Perder tempo com coisas abjetas é só isso: perder tempo.

[Publicado originalmente na edição de 25 de setembro de 2016]