Entrevista a Rui Unas

«Enquanto você se esforça pra ser/
Um sujeito normal e fazer tudo igual/
Eu do meu lado aprendendo a ser louco/
Um maluco total, na loucura geral/
Controlando a minha maluquez
/Misturada com minha lucidez.» No velho gira-discos, comprado em segunda mão, roda Maluco Beleza, sucesso de Raul Seixas, cantor e compositor brasileiro, mantra e nome do mais recente projeto de Rui Unas: um podcast disponível no Youtube, risco e prazer assumidos, que lhe permite ser genuíno como nunca foi. No estúdio do programa, no Dafundo, em Lisboa, longa conversa sobre vinte anos de carreira – e 42 de vida – do artista de variedades, apresentador, ator, humorista, podcaster. Garante que não depende do juízo dos outros e que a estabilidade familiar e a paternidade o apaziguaram. Hoje, seria muito estúpido não ser feliz.

Faz televisão, cinema, rádio, teatro escreve livros. Que devo chamar-lhe? Artista?
Pois, também tenho muita dificuldade nessa questão. Auto-proclamar-me artista é um pouco pretensioso. Costumo dizer que faço variedades. Faço coisas variadas.

E é sobretudo apresentador, área em que se distingue. Concorda?
Vão ser sempre perguntas difíceis? Não sei como responder. Sei que comecei como apresentador, como comunicador. Essa, julgo, é a base de tudo o que faço. Onde me sinto mais confortável e onde, penso,dei mais cartas, é mesmo na comunicação.

Sendo preciso, não teria portanto dificuldades em optar por um só caminho.
Escolheria sempre a vertente da comunicação. Não é por acaso que o meu primeiro projeto pessoal, assumindo completamente o risco, é Maluco Beleza. É nesse registo que me sinto mais confortável e mais feliz. Até porque me dá a possibilidade de ser também humorista e ator, duas vertentes que descobri quando apresentava programas de televisão. Algo, que de forma tímida, fui experimentando.

Que imagem acha que os portugueses têm de si?
Haverá os que se lembram de mim apenas no Curto Circuito, ou os que só me conhecem das novelas. Mas um público mais atento já percebeu que toco vários instrumentos. Nenhum de uma forma brilhante, mas vários: cinema, teatro, programas de televisão. Sabe que faço humor. Creio que um público mais atento, gostando mais ou menos, sabe que já fiz muita coisa.

Entre tanta coisa, há, seguramente, momentos-chave. Quais são os dos últimos 20 anos?
O Curto Circuito. Um programa que ainda existe com outros apresentadores, outros públicos, mas que marcou (e marca) gerações, pela enorme liberdade e «escola» de apresentação. O Cabaret da Coxa, indiscutivelmente, porque foi onde pus em prática todo o meu know how de entertainer. O filme Os Imortais, a minha primeira experiência como ator de cinema, em que contracenei com Joaquim de Almeida e Nicolau Breyner. E recentemente a novela Sol de Inverno, na qual tenho o privilégio de fazer uma personagem querida do chamado «grande público» no formato maior da tv.

Que pode dizer o «grande público» de si? Que é «um tipo porreiro, bom amigo, excelente profissional»?
[Ri] Durante muito tempo, as pessoas confundiam-me com as personagens que eu fazia. O apresentador do Curto Circuito, ou o do Cabaret da Coxa, marcaram muito. Demorou algum tempo até que as pessoas percebessem que tinham pela frente uma personagem, mas depois a imagem muito vincado do Rui Unas «ganda maluco» foi-se esbatendo. Hoje, as pessoas percebem que eu sou «um ganda maluco», é verdade, mas só quando quero. Seria muito redutor ser só isso. Resumindo, julgo que as pessoas acreditam que sou verdadeiro naquilo que faço e notam que cada vez mais faço questão de ser eu próprio. Isso para mim é importante, confesso.

Quer dizer que nunca foi tão genuíno como no projeto audiovisual Maluco Beleza (começou como um podcast mas tem uma existência no canal de YouTube)?
Sem dúvida. Nunca me expus tanto como aqui. No 5 para a Meia- Noite, para dar um exemplo de um programa mais recente, mantinha-me em personagem. No Maluco Beleza, não. E as pessoas foram aprendendo a não me catalogar.

Incomoda-o o que os outros possam pensar de si?
Durante muito tempo estive dependente da opinião dos outros. Essa dependência incomoda, perturba e condiciona. Hoje, o facto de estar nisto há muito tempo, e já ter provado a mim mesmo que tenho algum valor, permite-me acreditar em mim e não estar dependente do juízo dos outros. Por muito arrogante que isto possa parecer, assumo que nesta fase da minha carreira já não preciso da validação do público para ter confiança no que faço. Há algo de libertador no que acabei de dizer [ri].

Em que lugar está entre os seus pares?
Sinceramente, não sei.

A montante esteve sempre o Herman?
Não, pelo menos de forma consciente. Quando comecei na rádio não queria ser humorista e na televisão nunca tentei imitá-lo. Nem o tinha como referência. Contudo, como única figura transgressora dos anos 1980, o Herman é incontornável para todos os da minha geração.

Quando é abordado na rua, que personagem é mais solicitado?
Curiosamente, em 10 pessoas oito falam-me do Maluco Beleza. Pessoal mais novo e não tão novo assim. Não estou a fazer marketing, é mesmo verdade. Recentemente, aconteceu no aeroporto de Frankfurt, com um emigrante português.

Maluco Beleza. Onde foi buscar o nome?
Num filme que fiz no Brasil – Colegas – havia uma personagem inspirada num cantor brasileiro chamado Raul Seixas, que eu desconhecia. Fui investigar a obra e fiquei apaixonado. Tem uma música chamada Maluco Beleza e a letra, com a qual me identifico muito, é um mantra para mim.

De que diz essa letra de tão especial?
«Enquanto você se esforça para ser um sujeito normal e fazer tudo igual, no meu lado aprendendo a ser louco, um maluco total» – a música começa assim. Acho que as pessoas se esforçam para ser «normais» quando o que nos diferencia é a loucura «particular» de cada um. É a «maluquez misturada com a lucidez» como diz a canção que nos faz fazer coisas diferentes, «arriscadas» e faz que o mundo evolua. Os que fizeram diferente, os «malucos beleza» artistas, cientistas, desportistas do seu tempo, foram os que mais contribuíram para que o mundo não fosse tão cinzento.

Surpreende-o o sucesso rápido do projeto?
Decidi não criar nenhum tipo de expetativas. A minha única expetativa – que era divertir-me e ter gozo a fazer isto – está a ser cumprida. Este projeto obriga a muito trabalho, pressão e risco, mas o retorno do público tem sido uma boa surpresa.

Nas abordagens do público, qual é a pergunta mais frequente?
Se posso tirar uma selfie.

Nunca recusa?
Nunca recuso. Dantes, tinha regras mais rígidas. O momento da refeição, por exemplo, era sagrado e fazia questão de o demonstrar. Agora, sou mais benevolente. Ontem, por exemplo: estava muito bem na praia de Sesimbra, deitadinho ao lado da minha mulher, aquele momento em que estamos quase a adormecer e a curtir o sol depois de tomar um banho, quando um grupo de miúdos, uns sete ou oito, veio pedir uma fotografia. O que se lhes responde? Levantei-me, fiz a minha melhor cara e recolhi à toalha.

Nas entrevistas, nos eventos, aparece sempre bem disposto, divertido, feliz. Personagem, ou a vida corre-lhe mesmo muito bem?
Nem sempre foi assim. Há uns dez ou quinze anos tinha um lado naturalmente depressivo, talvez até paradoxal tendo em conta as palhaçadas que fazia. Depois, fui resolvendo esse lado.

Afinal, os humoristas, os «ganda malucos» cabem bem no retrato do tipo depressivo.
Sim, tem razão. Era muito exigente comigo próprio, auto-pressionava-me, perdia-me com frequência em dúvidas existenciais fortissímas. Felizmente, a idade dá-nos coisas boas. A idade, a estabilidade familiar, a paternidade, o facto de ser feliz naquilo que faço apaziguaram-me. Hoje, seria muito estúpido não ser feliz, não estar grato. Imponho a mim mesmo um otimismo e uma gratidão, faço por ser feliz. Sim, posso dizer que hoje essa imagem bem disposta corresponde à realidade. É onde estou agora: de bem com a vida e com aquilo que faço.

No início, a provocação era uma necessidade, uma resposta ao lado depressivo e tímido?
Não só, mas também. Por um lado, não era nada pensado, por outro, sim, na medida em que eu queria ser um apresentador como pensava que deveria ser um apresentador jovem.

Inspirava-se em quem?
Em ninguém. Em finais dos anos 1990 (1996) não havia referências. Tinha visto umas coisas na MTV e estava um pouco perdido. Ser brincalhão, divertido, confiante, ajudava a disfarçar a minha timidez e a minha insegurança.

Ainda há réstias desse Unas inicial?
Há sempre alguma insegurança, mas hoje assumo-a. Hoje, as minhas inseguranças, defeitos, falhas, são assumidas.

Tem mais auto-estima, é isso?
A auto-estima vai bem, obrigado. Mas não vou negar que há momentos em que me vou abaixo, por qualquer coisa que acontece ou quando um objetivo não é atingido.

E momentos de ego inflamado?
Não tenho e aí é que está: infelizmente perdi isso (se bem que a internet está agora a trazer-mo de novo). Já me frustrei tanto, já me desiludi tanto com o showbiz que dificilmente me apaixono. Já aprendi que todos os projetos têm um fim e que os resultados esperados nem sempre aparecem. Portanto, não crio expetativas. O mais certo é que redundem em desilusões. Por vezes, é claro, sabe bem estar em alta. Aconteceu-me há dois anos. Mas uma fase boa pode não querer dizer uma fase feliz. Penso sempre que a vaga pode desaparecer a qualquer momento. Afinal, o sucesso é o que sabemos.

O que é sucesso?
É estarmos grande parte do nosso tempo a fazer o que gostamos de fazer. O ideal é que a esse gozo corresponda o reconhecimento dos outros e a compensação financeira à altura. Mas nem sempre é assim. Por isso, se tiver de optar, opto decididamente por ser feliz.

Gosta muito do que faz, mas não gosta do mundo em que se mexe. É isso?
É isso mesmo. Este meio é muito ingrato e muito injusto. Dependemos de muitos fatores: das direções que decidem, das modas, da concorrência. Temos de fazer concessões, de engolir sapos, e desiludimo-nos. Não é um caminho fácil. Chegar ao topo não é difícil. Difícil é ficar lá. Dificílimo é recuperar de uma queda.

Sabe o que isso é.
Sei o que isso é. Em 2006, depois do pouco sucesso do concurso Pegar ou Largar, na SIC, entrei em depressão. Tive dúvidas muito grandes, perguntei-me muitas vezes se teria valor para me manter no «negócio». Estava muito desiludido. Lá está: tinha pensado que iria por determinado caminho e a expetativa frustrou-se. Deixei de ter convites para fazer televisão. Fiz uma travessia do deserto.

Como funciona em adversidade?
Atualmente, com mindset. Parto para outra. Entre 2007/2010 fui um bocado abaixo.

Apesar de tudo foi um período em que fez rádio e teatro.
E, sobretudo, estreitei amizade com o Diogo Morgado, um momento importante na minha vida. O Diogo é empenhado, ambicioso no bom sentido da palavra, e inspirou-me. Paulatinamente, a vida começou a endireitar-se.

Já tinha um filho, na altura. Ter mais contas para pagar retira liberdade criativa ao autor?
Não sei se retira liberdade criativa. Sei, sim, que não posso dar-me ao luxo de ficar deprimido e não trabalhar.

Como escreve uma piada?
Tenho alguma dificuldade em considerar-me um humorista, no sentido em que não faço disso uma atividade regular. Não tenho esse músculo trabalhado. Sou mais um performer do que um autor. Sou, sobretudo, um repentista. Sei que, no improviso, o músculo está sempre a trabalhar.

Já recusou textos?
Muito raramente, quem escreve para mim conhece-me bem e conhece o meu estilo.

Que limites coloca ao humor?
Talvez por imaturidade, houve um tempo em que não tinha muitos limites, confesso. Hoje, tenho alguns. Contudo, continuo a achar que no humor não deve haver limites. Mas tem de ter graça. A única justificação para fazer humor com determinados assuntos só pode ser a graça. A provocação, a transgressão, não chegam. Uma piada sobre alguém que tem sida tem de ter mesmo muita piada.

Ricky Gervais diz que o limite está nisto: saber se a piada vem do lado bom ou do lado mau.
É verdade. Há pessoas que compreendem isso, outras que não compreendem. Há pessoas que se sentem ofendidas.

Qual é, então, o seu limite?
O bom-senso. Perceber se esta piada vem do lado bom e se o intuito é, ou não, divertir as pessoas.

Piadas com refugiados?
Porque não?

E sobre o Holocausto?
Piadas sobre refugiados com sida em pleno Holocausto, porque não?

Portanto, pode um humorista ser o que convencionou chamar-se politicamente correto?
É uma pergunta tramada para a qual não tenho resposta. Por natureza, o humor é politicamente incorreto. Por que não é «correto» alvejarmos alguém «impunemente». Há sempre uma vítima.

Na fase Cabaret da Coxa assumiu que um dos grandes objectivos no programa era fazer «coisas parvas». Basta fazer coisas parvas?
Às vezes, basta. Num talk show humorístico, em horário noturno, funciona a ideia «vamos lá ser tontos». E não há que ter complexos com isso. Depois, é claro, podemos ir acrescentando outras camadas, de uma crítica social a um statement político. Vemos isso em muitos programas estrangeiros de referência. São assumidas posições, normalmente de esquerda. Por exemplo, em piadas sobre Donald Trump.

É de esquerda ou de direita?
Considero-me de esquerda em termos sociais. Em termos económicos, não tenho tantas certezas.

Em Portugal, os políticos são muito poupados.
São poupados, é verdade. Mas eles também podiam ser mais «amigos». Por exemplo, a atitude mais despreocupada de Marcelo (Rebelo de Sousa) só o beneficia. É o primeiro a rir-se dele próprio. Quando, em contrapartida, os políticos assumem o lado protocolar estão a ser ridículos. E todos eles são ridículos: na forma como falam, na forma como se vestem, na maneira como gesticulam. Esse comportamento é altamente «pegável» em termos humorísticos. O problema é que não entram no nosso jogo.

Paulo Portas, Passos Coelho, Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa, Catarina Martins, Jerónimo de Sousa. Qual deles é mais caricaturável?
Paulo Portas, talvez. Diz-se o nome dele e as pessoas esboçam um sorriso. Altamente popular, independentemente da fação política é uma caricatura e uma figura luminosa. Passos Coelho é o oposto. É uma figura sombria, pesada. Já o António Costa é aborrecidamente normal.

Portugal é um país com sentido de humor?
Não temos riso fácil. Somos pouco expansivos, sisudos. No entanto, há cinco ou seis anos, devido à stand up, todos os miúdos queriam ser humoristas.

Já não querem?
Agora querem ser youtubers – julgam (e bem) que basta ter uma câmara. Têm é a ilusão que isso trará popularidade e eventualmente muito dinheiro.

Fez vários trabalhos para a RTP. Como vai o humor na televisão pública?
Devo dizer que por exemplo no Anti-Crise [programa de humor emitido em 2013], com textos da autoria das Produções Fictícias, tivemos uma liberdade raríssima e, de resto, audiências muito interessantes. Fui muito feliz.

Surpreendeu-o essa liberdade?
Surpreendeu. Acho que aproveitámos algum desnorte de comando que a televisão tinha na altura.

Já se arrependeu de alguma piada?
Tenho noção de que em alguns episódios do Cabaret da Coxa exagerei. Num deles, então, o exagero é claríssimo. O Cabaret da Coxa era um programa muito arriscado, mas nada justificou a minha deselegância. Lá está, falhou o bom-senso.

O que aconteceu?
A Mariza era a convidada. E como tinha dito numa entrevista que não nunca recebia piropos, decidimos fazer um vox pop com homens das obras a mandarem-lhe piropos, claro. Vi a montagem, mas com pressa, porque a peça ficou pronta apenas 15 minutos antes do início do programa. E, na confusão, passou um piropo muito deselegante.

Como resolveu a situação em direto?
Não resolvi. Limitei-me a ficar muito envergonhado e constrangido quando vi a Mariza transfigurar-se. Assumo o erro.

Nunca foi a tribunal?
Nunca.

Já sentiu a censura?
Nunca.

Nem quando foi muito agressivo com a Igreja Católica?
Nunca tive problemas. Hoje, no entanto, não seria tão agressivo.

Porquê?
Não porque ache que não se deve fazer ou porque tenha amolecido, mas porque, nesta fase, não devo fazê-lo. Aquele statement teve o seu tempo. Agora, já não sinto necessidade de o fazer.

Teve uma relação traumática com a igreja católica?
Não, nem sou baptizado. Contudo, tenho uma cultura bíblica muito acima da média.

Porquê?
Porque sou curioso. Não li a Bíblia toda – considero-me um ateu convicto –, mas conheço os episódios bíblicos.


Leia a segunda parte desta entrevista: Rui Unas: «Nunca apanhei uma bebedeira. Gosto de estar sempre em controlo absoluto»