Elena Ferrante vai resistir aos holofotes?

Notícias Magazine

A escritora que jogou com o mistério foi apanhada pela voragem mediática. Vai ser interessante segui-la a partir daqui.

Nesta semana uma escritora obscura ultrapassou uma socialite em popularidade. O roubo de 2,5 milhões de dólares em joias a Kim Kardashian, em Paris, passou para segundo plano atrás das notícias de que Elena Ferrante é, afinal, Anita Raja, uma tradutora italiana. O jornalista de quem se falou, e que fez a descoberta, não era um paparazzo, foi Claudio Gatti, italiano, repórter de investigação. A polémica que se instalou foi se uma escritora que pretende continuar no anonimato devia ter sido alvo de uma investigação jornalística que revelou a sua real identidade.

Não faço esta comparação – entre uma socialite que mostra tudo e uma escritora que não queria mostrar nada – de ânimo leve. Faço-a por causa da questão que se me colocou desde que vi as primeiras notícias: quem é que hoje, podendo ser famosa, não apenas famosa mas mundialmente famosa, escolhe não o ser? Quem é que, na voragem em que vivemos, de mostrar tudo o que fazemos nas redes sociais, escolhe nada mostrar, nada revelar?

A pressão de tornar público o que nos é privado é de tal ordem que quando não o fazemos sentimos que estamos a tomar uma atitude. Quando não colocamos uma única fotografia de férias no Instagram… é porque não estivemos lá. Quando não postamos mais uma boutade sobre o tempo, o pôr do Sol, não divulgamos a enésima refeição espetacular que tivemos. Somos todos cúmplices, neste striptease coletivo que começa nos participantes dos reality shows e acaba nos nossos telemóveis. Ninguém escapa.

Pelos vistos, Anita Raja escapou. E não apenas a essa pressão que cai sobre as pessoas comuns, que todos temos e sentimos, como também resistiu à vertigem da fama. Ao reconhecimento que faz bem ao ego, instila a vaidade e liberta endorfinas. Esse que os escritores procuram, e encontram na fama de o serem. Não apenas nas entrevistas, mas também na vida social que fazem, em conferências, leituras e festivais. Essa alta-roda em que se tornou o mundo dos escritores, e da própria literatura – e que é tanto alimento da indústria dos livros como a alimenta. De tal modo que, às tantas, já confundimos a obra com o criador, as histórias com a biografia.

Anita Raja tinha jogado com tudo isso. Escolheu esconder-se, mas embora nunca tenha dado a cara deu entrevistas (por e-mail), falou da sua vida – hipotética, sabemo-lo agora – e preparava-se para lançar uma autobiografia – Frantumaglia: A Writer’s Journey. Deu pormenores falsos, citando Italo Calvino: «Pergunta-me o que queres saber, mas eu não te vou dizer a verdade, disso podes estar certo.» Anita jogou: do mistério que a rodeava alimentou também o seu sucesso. Elena Ferrante faz parte da equação que é esta obra de arte criada por Anita Raja.

Neste mundo onde a biografia grita mais alto do que a bibliografia, a autora e a sua obra foram engolidas pela voragem dos media. Vai ser muito interessante seguir este caso.

[Publicado originalmente na edição de 09 de outubro de 2016]