Dona Hillary, a caçadora do pavão

Notícias Magazine

A América tinha-nos dado uma ilusão: apesar de não termos nascido Windsor, Bragança ou Bourbon, qualquer um podia chegar a chefe de Estado. Essa ilusão era uma bela promessa. Hoje é uma ameaça. Com Donald Trump percebemos: é mesmo qualquer um que pode.

Falta um mês para saber se o drama acontece. Se Trump não ganhar foi porque Hillary Clinton lhe deu uma coça na segunda-feira passada. Mas as sondagens estão renhidas e a possibilidade de vitória de Trump é real. E a acontecer ele conseguiu-o sem esconder ao que ia. Ele não liderou um golpe de Estado nem aproveitou um cataclismo natural. Ele simplesmente seguiu as regras da democracia no seu país e que são longas e exigentes: para se encontrar com Hillary, Trump ultrapassou 16 adversários republicanos, nas primárias. Ele que era, à partida, o forasteiro no seu próprio partido…

Pois durante essa maratona de quase um ano e que ainda dura, Donald Trump ofereceu-se aos nossos olhos e ouvidos, de corpo feito e conversa perversa. Não sincero, ninguém é sincero com aqueles cabelos e trejeitos de boca, mas exposto. Sem pudor, mostrou-se gabarola e desprezível.

Então, o primeiro debate destas presidenciais, o tal confronto com Hillary. Trump fez gala de ir despreocupado. Até acusou a adversária de se ter fechado em casa a preparar-se… O que permitiu a Hillary a tirada da noite: «Claro que sim. E sabe para o que estive a preparar-me? Para ser presidente dos Estados Unidos.» O episódio demonstra dois mundos. O de Trump é o do ungido do Senhor: começou a carreira com, como ele disse, um «pequeno empréstimo» do pai. Não foi único, Fred Trump, construtor imobiliário, iria fazer-lhe mais doações e deixar-lhe herança milionária – e esse tal primeiro «empréstimo», em 1978, foi de um milhão de dólares, equivalente ao triplo, hoje.

Hillary empurrou Trump para confissões, que ele, aliás, fazia-as de bom grado. Disse ela que ele não pagava impostos. E ele atalhou: «Seria desperdiçar dinheiro.» Ela voltou ao assunto da fuga de impostos. E ele: «Sou um tipo esperto.» E ela sugeriu o papel dele no colapso do mercado imobiliário em 2006, de que Trump beneficiou. E ele: «A isso chama-se fazer negócios.»

Estava, é de lembrar, a tentar saber-se qual dos dois era o mais bem preparado para defender a América (as eleições são para o líder deles). Hillary Clinton conduziu a conversa de forma a que os eleitores americanos tivessem uma antevisão da faena com bandarilhas que, numa cimeira mundial, Vladimir Putin cravaria no pescoço deste impreparado enfatuado. Mas viram isso os eleitores?

Nas primárias, Jeb Bush, Rubio e Ted Cruz foram atormentados por este Trump. Este, com a vantagem dos recém-chegados desdenhados, soube criar uma aura de imbatível. Mas Hillary Clinton mostrou que era possível desfazer-lhe os truques desonestos. Foi uma proeza ainda mais extraordinária porque executada por uma mulher. Sim, porque entre muitos «primeiros» que estas presidenciais têm há o primeiro debate presidencial entre um homem e uma mulher. Argumentos à parte, havia outra conversa em jogo…

Depois do debate, um conhecido jornalista da cadeia televisiva Fox disse que os eleitores, além das palavras, seguiam as caras dos candidatos. Ora, disse o jornalista, do lado democrata a face nem sempre era «necessariamente atrativa». Outro jornalista, da NBC, achou Hillary «demasiado preparada».

Nem uma beleza e assustadoramente capaz… Se mesmo assim dá cabo dum pavão, é mesmo um feito.

[Publicado originalmente na edição de 02 de outubro de 2016]