Do Irão para Lisboa, um filme de sucesso

O que faz um iraniano à frente de um festival de cinema em Lisboa? Quando era criança, na longínqua província de Guilan, a trezentos quilómetros de Teerão, e quase foi expulso da escola por ter uma fotografia do Bruce Lee, reza Hajipour estava longe de pensar que o seu destino se cruzaria com Portugal. Agora é diretor do Arroios Film Festival, um projeto pioneiro de inclusão social pela sétima arte, de projeção internacional, que terá em setembro a sua segunda edição. [Esta reportagem, que agora recuperamos, foi realizada em julho de 2016]. No passado dia 1 de março abriram as candidaturas, que já vão em 350, 100 delas apresentadas logo no primeiro dia.

Uma vez sentidas, há paixões na vida de um homem que não podem ser suprimidas. Mohammad Reza Hajipour tinha 5 anos quando descobriu que o cinema era a sua, inviolável e secreta, nada de que pudesse andar a falar com os outros meninos. «Nasci em dezembro de 1977 em Fouman, província de Guilan, e em 1979 deu-se a revolução no Irão que proibia tudo», diz o realizador de 38 anos, a viver desde 2008 em Portugal. O regime político dos ayatollahs restringia, condenava, perseguia. A família de Reza reagiu: entre tios e primos alugaram ilegalmente um projetor, levaram-no para a sala mais escura em casa da avó e começaram a fazer sessões domésticas para uns 50 familiares cúmplices, agarrados àquelas sessões de home cinema ao fim de semana.

«Adorava os encontros para ver filmes. Sonhava com eles. Ainda um não tinha acabado e já esperava ansiosamente pelo seguinte», conta o iraniano. A sua relação com o cinema tornou-se forte logo aí, com as interrogações a esfumarem-se diante dos truques da câmara. Recordando esses sentimentos de miúdo, chega à conclusão de que foram necessários para ser agora um bom diretor do Arroios Film Festival, um projeto pioneiro de inclusão social pela sétima arte, de projeção internacional. «Aqui em Arroios convivem mais de 60 nacionalidades diferentes e não temos bairros problemáticos. Tornou-se turística quando antes nem parecia pertencer à Europa. É um exemplo de integração.»

Então, a presidente da junta de freguesia, Margarida Martins, achou que podiam passar esta mensagem a outras zonas de Portugal e até do mundo. Convidou-o a ele justamente por ser iraniano, bem adaptado à sociedade, morador em Arroios desde que cá chegou há oito anos, defensor de se trabalhar para aceitar os estrangeiros como cidadãos, em vez de combatê-los como inimigos. «Se queremos insistir em nacionalismos fica tudo uma guerra, e hoje em dia há demasiado conflito a provar que fechar fronteiras não é solução», sublinha Reza Hajipour. Convidou-o também por ser um realizador premiado de curtas-metragens, que sentiu a censura nas ideias e talvez por isso se eriça contra radicalismos de qualquer espécie.

«Em casa da minha avó víamos sempre cinema iraniano antigo interdito pelo governo, filmes indianos e, a rematar, muita action do Bruce Lee, os meus preferidos», recorda.

No escuro, o herói marcial derrubava os oponentes à força de socos, pontapés e esquivas servidos de cabeça erguida – uma metáfora para a vida. O realizador quase foi mandado embora da escola aos 6 anos, quando o apanharam com uma foto do seu ídolo, mas aquilo era mais forte do que ele, transportava-o para outra dimensão. Os obstáculos eram superados, os bons recompensados e a ordem reposta, de preferência com um beijo do par romântico num final feliz, ou com a retirada triunfal do protagonista solitário. Sentia-se reconciliado, apesar de tudo. «Para mim, ainda hoje é estranho ver passar filmes do Bruce Lee na televisão iraniana, autorizados pelo mesmo governo que quis expulsar-me em miúdo por eu ter uma imagem do ator.»

O cinema continuou a ser a sua paixão secreta enquanto se formava em Línguas e Literatura na Oloom Tahghighat, Universidade de Azad, entre 1999 e 2003. Por lá editou e dirigiu a revista Boomik, uma publicação sociocultural que ao fim de algum tempo não deixaram que continuasse devido a uns artigos políticos da sua autoria. Por outro lado, ter estudado a língua africana hausa (hauçá em português) valeu-lhe um convite para trabalhar na rádio Hausa, primeiro como tradutor e depois como produtor, absorvendo tudo o que havia a saber sobre o assunto entre outubro de 1999 e março de 2008.

«Também estudei os grandes da literatura – Anton Tchekhov, Franz Kafka, Nikolai Gogol, a poesia do iraniano Ahmad Shamlou, a prosa de Sadegh Hedayat – e descobri que me identifico muito com essa linha de escrita, centrada nos dramas humanos.» Reza lia as obras e dava consigo a traçar retratos de pessoas, a anotar mentalmente as características de cada uma, a comparar personagens dentro da história. Em 2004, finalmente, lançou-se no cinema – um ano intensivo na Iranian Youth Cinema Society, em Teerão, a aprender cinematografia, guionismo e realização –, ao mesmo tempo que se mantinha na rádio e colaborava como assistente de produção em programas televisivos. «Era sempre eu o primeiro a chegar ao curso de cinema e o último a sair. Os professores deviam chatear-se comigo por estar constantemente a fazer-lhes perguntas, mas tinha sede de saber.» No final teve que fazer a sua primeira curta, O Primeiro Dia de Trabalho, e percebeu que aquele país não é para sonhadores: «Todas as terças-feiras tinha que mostrá-la a um professor que me dizia que partes devia substituir. Passado um ano aprovaram o resultado e eu só pensava: “Mas este não é o meu guião!” Não era nada do que tinha imaginado, nada. Por isso decidi fazê-lo à minha maneira e o filme nunca passou no Irão», lamenta. Foi quando soube que tinha de sair e acabou em Portugal.

«Em 2007, O Primeiro Dia de Trabalho foi selecionado e exibido no festival internacional de curtas Cinewest Australia e no Fike – Festival Internacional de Curtas-Metragens em Évora. Senti-me logo em casa.» Regressou ao Irão e ganhou o Prémio de Melhor Programa da Rádio e o Prémio Especial do Júri no festival do IRIB – Islamic Republic of Iran Broadcasting, a organização iraniana de rádio e televisão. Em 2008 voltou para ficar, deixando para trás a mãe, seu pilar incondicional de força e amor. Deixou ainda um percurso limpo como produtor executivo de telefilmes, produtor de programas de TV ao vivo e cerca de 40 documentários escritos e realizados por si, além de ter sido assistente de realização no telefilme Chahe Freshteh, vencedor de sete prémios no Irão, e produtor executivo no telefilme Shahre Javidan. Reza Hajipour pensou que aqui podia ganhar a vida com a sua arte, mas é bem mais difícil do que julgava.

«Fico triste ao ver amigos portugueses fazerem filmes com tantas dificuldades, bons filmes, para depois passarem uma semana numa sala que ninguém conhece», lastima.

Da sua parte já escreveu, realizou e produziu quatro curtas que correram mostras de todo o mundo: O Primeiro Dia de Trabalho (2007), Análises (2010), O Bebé (2011) – a preferida do público no FESTin 2013 – e A Estreia (2015) – eleita Melhor Filme do 48 Hour Film Project Lisboa 2015, Melhor Argumento, Melhor Acting, Melhor Utilização do Objeto e Prémio do Público, o que lhe valeu representar Lisboa no festival Filmapalooza 2016, em Los Angeles. Reza tornou-se perito a fazer magia com pouco orçamento: em setembro de 2014 deu, inclusive, um workshop na Fundação Cultural de Joinville (Norte de Santa Catarina, Brasil) sobre como fazer cinema independente de qualidade, a baixo custo. Mas claro que nem sempre dá.

«Se o governo não apoiar, o cinema nacional vai morrer. Não fosse a paixão dos cineastas e nunca teríamos um Manoel de Oliveira, um Pedro Costa e tantos talentos que o estrangeiro valoriza, mas cá estão condenados a sobreviver», diz. Ele próprio teve de arranjar uma fonte de rendimento fiável quando se casou há quatro anos com uma iraniana. «Há alturas na vida de um homem em que valores mais urgentes se levantam.» Abriu um kebab com sabor iraniano, Tika Kebab, perto do Zoo de Lisboa. Vai trabalhando para televisão e aguarda dias melhores, em que o cinema independente será acarinhado por quem manda nestas coisas da cultura. «Ando há uns anos para fazer a curta-metragem Os Olhos e continuo à procura de apoios, sem querer despachá-la num dia ou dois, como é hábito, para não estragar uma história que é tão boa.»

No Irão, por muitos defeitos que haja, aposta-se no cinema nacional e de autor. «Temos guiões ótimos, os atores são bons, mas depois a parte técnica falha, já para não falar na falta de liberdade de expressão», enumera. Aqui, pelo contrário, o guião é cansativo na maioria das vezes, os meios escassos, mas tudo o resto é bom. E o realizador agradece cada voto de confiança dos amigos portugueses: «Atores e técnicos vêm trabalhar comigo a troco de muito pouco porque também acreditam nos projetos. Fazem-me prosseguir.» Tudo serve para lhe devolver o sentido da realidade que um dia há de inspirar novos filmes.

Arroios Film Festival – Parte II

A segunda edição do Arroios Film Festival já tem data marcada, de 9 a 16 de setembro, no Auditório Camões e na Alameda Dom Afonso Henriques. Cineastas dos quatro cantos do mundo já se podem inscrever nas plataformas Film Free Way e FestHome. A organização do certame, que conta já com mais de 350 candidatos, recebeu mais de 100 inscrições só no primeiro dia, 1 de março. Ficção, documentário ou animação, no Arroios Film festival serão admitidas curtas-metragens que devem cumprir três requisitos: relação com o tema do festival, duração máxima de 30 minutos e terem sido produzidas a partir de 2007. A submissão deve ser feita online, através do site ou das plataformas Film Free Way ou FestHome, até ao dia 31 de maio, e a lista dos filmes selecionados estará disponível no site do festival, no final do mês de junho. No final deverão ser entregues 4 prémios: AFF Best Short Film, no valor de 3 000 euros, Best Narrative Short Film, Best Short documentary e Best Short Animation, no valor de 1 500 euros cada prémio.