Diabetes de alta competição

São cem atletas de 17 nacionalidades diferentes. Criaram uma equipa profissional de ciclismo, têm tido resultados animadores e só este ano vão participar em 500 provas. Esta semana estreiam-se em Portugal para correr a Volta ao Algarve em Bicicleta, que arranca na próxima quarta-feira. Um pormenor sobre estes ciclistas: são todos portadores de diabetes.

Quando te diagnosticam diabetes, a primeira coisa que ouves é uma lista de tudo o que não vais poder voltar a fazer», diz o irlandês Stephen Clancy. Foi há quatro anos que recebeu a sentença, quando tinha 19 – tinha diabetes tipo 1, o que significa que terá de receber insulina todos os dias, durante toda a vida. Uma enfermeira explicou-lhe que não poderia ser polícia, nem piloto de aviação comercial, nem militar. «Posso fazer ciclismo», perguntou. O rapaz tinha acabado de ganhar o prémio de revelação nacional no desporto e assinara com a melhor equipa da Irlanda, os Speedyspokes. «Lamento, mas a diabetes não é compatível com desporto de alta competição.»

Há uns cem tipos entre os 12 e os 34 anos que apoiam Clancy na resposta que ele deu à enfermeira: «Balelas.» E o motivo é simples: todos estão a treinar intensamente para as 500 provas de ciclismo que vão disputar em 2016. Há um par de semanas, os rapazes estiveram em estágio em Alicante, na Costa Blanca espanhola. É local de treino para muitas equipas profissionais de ciclismo e também para a Novo Nordisk. A diferença é que, neste conjunto, o dia começa com medições de glucose e injeções de insulina. Todos os atletas são diabéticos e a equipa tem o nome da maior farmacêutica do setor. De 17 a 21 de fevereiro, alguns destes ciclistas estarão pela primeira vez em Portugal, a correr a Volta ao Algarve. «O nosso objetivo é irmo-nos preparando em provas com níveis de dificuldade cada vez maior para, em 2021, podermos correr o Tour de France», diz Phil Southerland, fundador da equipa. A data não é inocente – é o centenário da descoberta da insulina. «E o caminho que estamos a trilhar é verdadeiramente animador», diz ele. Para já contam com meia dúzia de pódios em competições médias e uma vitória no Tour das Filipinas. «Em 2014 estávamos em 83º lugar no ranking da Federação Internacional de Ciclismo, agora estamos na posição 66. Isto em competição direta com mais de duas centenas de equipas profissionais.»

A ideia de criar uma equipa de ciclistas com diabetes nasceu quando Phil, um norte-americano do estado da Geórgia, estudava na faculdade. «Eu sempre fui um miúdo que adorava comer chocolates. E percebi que, se andasse duas horas de bicicleta, já não precisava de tomar insulina três horas antes de uma guloseima.» No ensino superior conheceu outro colega que, como ele, tinha diabetes tipo 1. Decidiram formar uma parceria para combater o estigma, e fizeram-no pondo-se em cima de um par de bicicletas e começando a pedalar. «Fizemos várias competições de uma costa à outra dos Estados Unidos. No primeiro ano, 2006, tínhamos duzentos dólares na carteira, juntámos mais seis amigos e os outros olhavam-nos com simpatia e alguma pena. No segundo ano ganhámos. E voltámos a fazê-lo em 2009 e 2010.» Lá por terem uma doença não precisavam de ser menos do que os outros.

No final do curso, em 2006, Phil tinha apresentado a sua ideia como tese de licenciatura: formar uma equipa de ciclistas profissionais com diabetes, que pudessem competir nas principais provas do mundo. Foi assim que nasceu a Type 1, com os tais oito corredores. Ainda hoje quase todos os desportistas são portadores dessa variável – que normalmente é detetada na infância e requer insulina diária. Mas agora, na Novo Nordisk, também há gente com tipo 2 – a que se desenvolve mais tarde e tem normalmente que ver com uma vida sedentária e uma dieta desequilibrada.

Em 2013, com um patrocinador de peso, começou a formar-se o plano atual. Hoje, há cem atletas, no ciclismo, atletismo e triatlo. Há equipas femininas, de bicicletas de montanha, e há campos de formação com miúdos do mundo inteiro. Alguns, se mostrarem que têm jeito e futuro, podem receber bolsas e frequentar estágios. «A ideia principal sempre foi a de mostrar e inspirar uma alternativa à tragédia», diz Phil. «É esse o objetivo primeiro. O segundo é ganhar corridas.»

A doença é muitas vezes apelidada de epidemia. Em todo o mundo, há 387 milhões de pessoas com diabetes e as estimativas apontam para 642 milhões em 2040. A doença provoca cinco milhões de mortes anuais e movimenta 500 mil milhões de euros. «Quando alguém é diagnosticado com diabetes aprende imediatamente duas coisas», diz Rafael Castol, o médico da equipa. «Que vai ter uma vida cheia de limitações e que a sua esperança de vida vai reduzir-se brutalmente. Mas isso não precisa de ser obrigatoriamente assim.» O médico mexicano fala de uma revolução tecnológica, que permite medições constantes dos níveis de glucose e a aplicação de níveis estáveis e lentos de insulina. «Se fores bem acompanhado, se aprenderes a ouvir o teu corpo, vais sujeitá-lo a menos pressão, a menos crises, e assim podes fazer mais e viver melhor.» Chris Williams é um bom exemplo disso. Australiano, tem 34 anos e só descobriu que tinha diabetes tipo 1 aos 27, quando colapsou no final de uma corrida de triatlo. «Nunca aceitei que teria de deixar uma vida atlética», conta agora. Foi medicado, começou a sentir-se melhor e integrou-se numa equipa profissional de ciclismo. «Mas eu era a única pessoa com diabetes, injetava-me às escondidas. Aliás, nunca tinha sequer ouvido falar de atletas que tivessem a minha doença, achei que estava sozinho, a desafiar as probabilidades.» Afinal não estava. Agora, em estágio, todos os atletas vivem vidas semelhantes. «É engraçado, acordamos e vamos todos tomar insulina.» Daí a nada saem para a estrada, apenas duas horas para manter o ritmo. «Levamos todos os medidores de glucose e, se for preciso, injetamo-nos em andamento. E sabes que mais? Isso é perfeitamente normal.»

VOLTA AO ALGARVE
Nasceu em 1960, esta será a 42ª edição e já contou com alguns dos melhores ciclistas do mundo. De 17 a 21 de fevereiro, as estradas do sul do país percorrem-se em duas rodas na Volta ao Algarve em Bicicleta. São cinco etapas, de Lagos à praia do Malhão, em Loulé, num total de 743,2 quilómetros. Este ano são 19 equipas em competição, e toda a gente está em dúvida se a vitória sorri à Sky ou à Quickstep, que têm dominado a corrida nos últimos anos. A edição deste ano traz, pela primeira vez, os ciclistas da Novo Nordisk a Portugal. É a edição número 42 de uma prova que já recebeu ciclistas como Lance Armstrong, Melcior Mauri, Alex Zülle e Floyd Landis, e que nasceu em 1960 e foi vencida quatro vezes por portugueses: Vítor Gamito, Hugo Sabido, Cândido Barbosa e Joaquim Gomes. Em 1984, o mítico Joaquim Agostinho sofreu uma queda durante esta competição, acabando por morrer dias depois.