A cura para a sida pode estar em Portugal

Encontrar a cura para a sida recorrendo a medicamentos antigos, existentes no mercado. É esse o objetivo do Recycle Drug, o estudo coordenado pelo investigador em farmácia João Gonçalves. Começaram com três mil fármacos, chegaram a cinco, cujo mecanismo de ação tem potencialidades para esse objetivo ambicioso: erradicar o VIH-1 da face da terra.

João Gonçalves. Fixe este nome. Daqui a alguns anos, talvez ouça falar dele. Com uma equipa de nove profissionais, o professor da faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa (FF-UL) e investigador do Instituto de Investigação e Medicamento (iMed) lidera uma equipa que está a validar fármacos antigos para tratar e erradicar o VIH-1. Uma espécie de reciclagem de medicamentos que poderá vir a constituir um avanço científico pioneiro e uma esperança para as pessoas infetadas com o vírus da sida.

O projeto RecycleDrug, iniciado há dois anos pela Farm-ID, Associação da Faculdade de Farmácia para a Investigação e Desenvolvimento da FF-UL, tem como objetivo encontrar a cura para a sida, a longo prazo, recorrendo a medicamentos já existentes no mercado. «Pegámos numa biblioteca de três mil medicamentos para várias patologias e de diversas especialidades, e que já saíram de patente, para chegar a uma short list de cinco», explica João Gonçalves. Estes cinco fazem parte dos resultados preliminares que indicam que estes fármacos têm potencialidades para erradicação do vírus.

«Imaginemos que as nossas células têm, no seu interior, a capacidade de resistir ao VIH, um vírus inteligente que se adapta bem ao sistema imunitário, e que, através de armas próprias, estratégias e proteínas, consegue bloquear os fatores de resistência que cada indivíduo possui.» Os cinco medicamentos estão neste momento a ser utilizados noutras patologias e «têm alguma atividade no controlo do VIH». Apesar de não revelar os nomes, por uma questão de confidencialidade, e para não criar falsas expetativas nas pessoas infetadas, João Gonçalves explica que são de áreas tão distintas e específicas como a neurológica, a metabólica e a área da dor.

A investigação recebeu, no ano passado, um financiamento de trinta mil euros, pelo Programa Gilead GÉNESE, que permitiu acelerar o processo de investigação. «Este montante foi fundamental para ultrapassar algumas barreiras. Para concorrer a outros financiamentos ou bolsas de maior valor, teremos de avançar na investigação, tornando-a mais forte e consistente.»

Passada a fase dos resultados preliminares, a equipa está agora a confirmar a eficácia das cinco moléculas, seguindo-se testes em animais. «Há que perceber qual o mecanismo de ação de cada um dos fármacos, e saber, destes cinco, qual será o melhor e mais eficaz.» Esta investigação tem a mais-valia de se basear em medicamentos cuja segurança já está estudada e confirmada. «São medicamentos de toma crónica, já é conhecida a segurança, sendo agora necessário avaliar a eficácia», afirma o investigador.

Nos últimos dez anos, o National Institute of Health (NIH), nos EUA, tem vindo a estudar e a investigar o impacto de alguns fármacos noutras áreas terapêuticas, normalmente chamado de «reposicionamento de medicamentos». João Gonçalves dá um exemplo concreto: «O Viagra foi inicialmente testado na área de cardiologia mas acabou por ser utilizado para outra patologia de uma especialidade diferente [potenciador sexual]. Recentemente, uma outra investigação do NIH conduziu a que um medicamento que era utilizado no cancro passasse a ter aplicabilidade e eficácia na sépsis.» Deste tipo de estudos têm surgido novos medicamentos ou formulações. Foi neste tipo de estudos científicos que o investigador se inspirou quando teve a ideia de avançar com este projeto.

Porquê o VIH? João Gonçalves trabalha em várias áreas terapêuticas, como os anticorpos em autoimunidade e cancro, mas interessa-se particularmente pelo VIH, tendo feito um doutoramento baseado no tema, nos anos 1990. «A indústria farmacêutica desempenha bem o seu papel no controlo de doenças. Há alguns anos, a principal preocupação era a de controlar a sida O grande desafio atualmente é curar.» Já são conhecidas as formas de controlar as complicações da doença e ultrapassar as resistências. «Mas ainda não conseguimos eliminar o VIH. Existem células que mantêm o vírus adormecido e a nossa estratégia passa por tentar fazer que o sistema imunitário consiga ser ativado, de forma a erradicar a doença.» A estratégia seguida pela equipa de João Gonçalves é diferente da que é defendida por outros grupos de investigadores em todo o mundo. «Existem algumas investigações no sentido de matar o VIH diretamente. Nós estamos a caminhar no sentido contrário: reforçar a resistência das células que temos naturalmente no nosso organismo.»

Para que seja possível passar à fase seguinte – testes em animais – será necessário procurar outros financiamentos, um dos condicionalismos que a investigação em Portugal atravessa. «Existem investigações potencialmente disruptivas no nosso país que ficam estagnadas e não avançam por falta de verba.» O dinheiro é talvez o maior entrave pois a potencialidade de medicamentos já existentes no mercado é enorme. Havendo verba para continuar a investigação ao ritmo indicado, «pode desenvolver-se um novo medicamento num menor espaço de tempo», diz João Gonçalves.

FINANCIAMENTO E INVESTIGAÇÃO
Criado em 2013, o Programa Gilead GÉNESE tem como objetivo incentivar a investigação translacional e clínica, a geração de dados e a implementação de boas práticas de acompanhamento dos doentes em Portugal. Em paralelo, é promovido o apoio a projetos nas áreas de educação para a saúde, bem como a intervenção comunitária e cívica. Destina-se ainda a apoiar projetos nacionais desenvolvidos por instituições, organizações ou grupos da sociedade civil que se dediquem à investigação científica ou ao desenvolvimento de iniciativas dirigidas à comunidade. No final da edição do presente ano, o programa terá disponibilizado um milhão de euros para o financiamento global de todos os projetos vencedores. As candidaturas para a edição de 2016 poderão ser submetidas entre 2 de junho e 14 de julho.

Com apoio GILEAD Advancing Teurapeutics. Improving Lives.

[Publicado originalmente na edição de 29 de maio de 2016]