Como votei o brexit

Notícias Magazine

Para referendo tonto, respostas loucas. Na quinta-feira desta semana, decidi fazer uma manifestação de repúdio e fui até ao centro de Albufeira, Algarve, expor o essencial do que penso sobre a consulta submetida nesse mesmo dia aos cidadãos britânicos. No referendo, pedia-se a escolha de uma de duas soluções: deve o Reino Unido permanecer na União Europeia ou abandoná-la? Os leitores já conhecem o resultado. Não quero é deixar de lembrar o meu ato cívico que, naturalmente, o Sun e os tabloides ingleses ignoraram, aterrorizados por eu lhes sabotar o brexit.

Entretanto, permitam-me enquadrar os acontecimentos. Ao fim de 43 anos de casamento da Europa e Grã-Bretanha (embora em quartos separados), o primeiro-ministro David Cameron decidiu fazer um referendo. Ele era por continuar a ligação com a UE e estava convicto de que essa era também a vontade dos seus compatriotas. As sondagens, porém, cedo começaram a mostrar que fora uma aposta arriscada. Até ao fim, sair ou ficar andaram empatados. O erro de Cameron era mais grave do que um simples equívoco de espingardas mal contadas, porque o que o motivou foi mera jogatina política.

A dimensão da irresponsabilidade podia ser explicada por Boris Johnson, também conservador, como Cameron, mas que se tornou o chefe da campanha do brexit, pela saída da UE. Antigo mayor de Londres e com apetite político, a Boris Johnson poderia ser atribuída a razão da promessa disparatada de Cameron em fazer o referendo. Não foi a camaradagem que os juntou na aventura, muito pelo contrário. O primeiro-ministro ousou propor o referendo para cortar rente as ambições de Boris Johnson em disputar-lhe a liderança do partido…

E foi nessa conjuntura desconjuntada, e comigo sem direito a voto, que decidi o tal raide a Albufeira, o lugar mais à mão cheio de ingleses. Quis demonstrar, já que me tramavam a vida, que tinha uma palavra a dizer. E tudo o que tinha para dizer cabia numa cartolina em que estava escrito isto: “Remember June 23”. Lembrem-se de 23 de junho… Um inglês de olhos baços e uma cerveja na mão, olhou o relógio como que a confirmar, e deve ter pensado que eu estava a anunciar em que dia estávamos. Porém, eu não me referia àquela quinta-feira, dia do referendo.

Pronto, fiz qualquer coisa. E ficou claro que ninguém tem o direito de sair da Europa, muito menos os britânicos, que devem muito a 23 de junho. Em Londres, nesse dia, em 1661, foi assinado pelo rei Carlos II de Inglaterra o acordo que o casaria com Catarina de Bragança, filha do rei João IV de Portugal. Sabe-se como a princesa portuguesa marcou a alma da grande ilha ao levar o desconhecido chá para lá.

E outro episódio, menos conhecido, confirma quão ingrata é essa hipótese de o Reino Unido cortar as amarras com o continente que lhe deu tanto. A armada que foi a Lisboa buscar a futura rainha Catarina era comandada por Edward Montagu, 1º conde de Sandwich. A glória desta família está marcada por um acontecimento posterior: o bisneto de Edward, John Montagu, Lord Sandwich, é tido como o inventor epónimo da sanduíche. Mas, lembro, naquele 23 de junho de 1661, o embaixador português que assinou o acordo com o rei Carlos II, foi Francisco de Melo e Torres, marquês de Sande! É evidente que, além do acordo e dos presentes dados pelos portugueses (por exemplo a cidade de Bombaim), também lá deixámos a receita da única glória gastronómica inglesa…

Como eu vos dizia, para referendo tonto, respostas loucas.

[Publicado originalmente na edição de 26 de junho de 2016]