Como era a vida em Luanda

Nos últimos anos do colonialismo português, Luanda era uma cidade irresistível. A jornalista Rita Garcia escreveu um livro sobre a vida na capital angolana nesses tempos, numa viagem ao passado para mostrar cada recanto, costume e paladar de uma cidade que já só existe na memória de quem lá viveu. Excertos de Luanda Como Ela Era, 1960-1975, que chegou esta semana às livrarias.

BCA, O EDIFÍCIO MAIS ALTO DO IMPÉRIO

«Em Luanda não havia impossíveis. Quando a administração do Banco Comercial de Angola quis um bolo para a abertura da nova sede, junto à Marginal de Luanda, só poderia recorrer à Paris-Versailles. A pastelaria tinha fama de fazer bolos perfeitos em forma de edifícios. (…) Mal tiveram a maqueta do prédio, os sócios da Paris chamaram o carpinteiro e uma equipa de pasteleiros e definiram uma estratégia. (…) Mas pouco antes de terminarem o trabalho aperceberam-se de um problema: o bolo (…) não cabia nas portas nem nos elevadores. Foi preciso uma grua para o içar para o terraço.»

ABRAM AS JANELAS: VEM AÍ A TIFA

«Mal soavam ao fundo os primeiros gritos a anunciar “Carro do fumo! Carro do fumo!”,um bando de crianças saía à rua em êxtase, à procura de um dos maiores divertimentos nas ruas de Luanda, no rescaldo das chuvas. Ninguém perdia a alegria de correr atrás de uma carrinha de caixa aberta que aspergia uma gorda e apetitosa nuvem de DDT para matar mosquitos.»

MIRAMAR, UM CINEMA COM VISTA

«Poucas experiências terão sido tão memoráveis como ver filmes à luz das estrelas, projectados num ecrã de 23 metros de comprimento, com a Marginal, os navios e o cheiro a maresia em pano de fundo. No Miramar, tudo isto estava incluído no preço do bilhete. (…) Um anfiteatro ao ar livre, com três patamares virados para uma tela gigantesca. Ao lado dessa estrutura ficava o bar, onde se vendia Cuca e Nocal para refrescar os intervalos. (…) Tinha capacidade para mais de 1500 pessoas, um enorme palco e um jardim tropical.»

O PROGRAMA MAIS LOUCO DA RÁDIO

«Aos sábados, os ouvintes da Rádio Ecclesia tinham uma missão sagrada: iam À Procura da Rolha. Desde que o programa Luanda lançara o passatempo, andava tudo doido por causa de um pedaço de cortiça. Mal ouviam na telefonia as pistas da semana, centenas de luandenses corriam para o largo, a rua ou o recanto onde a equipa do produtor José Maria Almeida havia escondido o tesouro. (…) Os ouvintes estavam dispostos a tudo para serem os primeiros a descobrir a rolha que dava acesso aos “magníficos prémios” apregoados na rádio.»

A GUERRA CHEGA A LUANDA


«A irmã Valbert nem sabia por onde começar. A superiora do Hospital Maria Pia, em Luanda, era uma francesa corajosa e eficiente, habituada a lidar com a vida e a morte. Mas nos dias que se seguiram aos primeiros ataques da UPA às fazendas do Norte de Angola, até ela se sentia perdida. Um comunicado oficial (…) a 17 de Março, 48 horas depois dos primeiros massacres, dava conta de incidentes contra centenas de civis e revelava que tinham chegado a Luanda “alguns feridos (…) carinhosamente recebidos”. No terreno, vivia-se uma situação de emergência. A toda a hora apareciam em Luanda mais vítimas em estado grave e faltavam mãos para as tratar. Em Salazar – A Resistência, Franco Nogueira descreveu ao pormenor a chegada dos fugitivos: eram “chusmas em tropel, feridos, esfarrapados, cobertos de pó e terra encarnada, mutilados à beira da morte por mínguas de cuidados”. Só na semana depois dos ataques terão acorrido à cidade 3500 refugiados.»

AMOR POR CORRESPONDÊNCIA

«O papel amareleceu com os anos, mas o início do romance entre Domingos Campião e Joaquina Franganito continua guardado na colecção de cartas que os dois numeraram e arquivaram como uma relíquia. Enquanto ele esteve em Angola, era assim que (…) Domingos dava conta do que lhe acontecia (…). Joaquina mantinha-o a par da vida na Vidigueira. A correspondência teria sido muito mais escassa se o ministro das Comunicações e do Ultramar não tivesse assinado uma portaria (…) isentando os aerogramas militares do pagamento de portes e sobretaxas aéreas. (…) Em Angola, eram de graça para os soldados.»

A MELHOR COSTUREIRA DA CIDADE


«Ao sábado à tarde, a expectativa era grande junto ao número 67 da Rua Salvador Correia. Cá fora, as mulheres deambulavam de um lado para o outro, a tentar espreitar o que se passava atrás das persianas, sempre corridas para adensar o mistério. Lá dentro, a azáfama do costume, com uma montra para preparar e um criativo que não descansava enquanto a dona da loja não estivesse em lágrimas. A cena repetia-se todas as semanas na boutique Mariarmanda, a loja da costureira mais cobiçada da cidade.»

MUSSULO, A PRAIA DOS RICOS


«Era nesta enseada mais longe da costa que muitas das famílias mais abastadas da cidade se reuniam ao fim-de-semana. Iam lá os Macambira, os Van Zeller e até o empresário Manoel Vinhas, nas temporadas que passava em Luanda. (…) Quem ia ao Mussulo precisava de um barco. (…) Mas o sossego da elite não durou para sempre. (…) O velejador Elísio Guimarães decidiu criar uma carreira regular para tornar o Mussulo mais acessível à população. Os negros chamavam-lhe “machimbombo do mar”, mas o verdadeiro nome do barco que fazia a travessia para o Mussulo era CaPosoka, expressão para “Está bonito” em umbundo.»

OS DIAS NA ILHA


«Viradas para as águas calmas da baía, ou alinhadas na contracosta; perto da cidade ou lá ao fundo, junto à ponta da Ilha. Cada um escolhia a praia de que mais gostava. A Restinga tinha a vantagem de ser logo depois da ponte, mas era menos recatada do que a dos Rotários. Já na do restaurante Barracuda (…) comia-se com areia nos pés. (…) Existiam soluções mais em conta, como o Pezinhos na Água e o Mandarim, o Mar e Sol e o Dongo. Quem gostava de descansar do sol durante a tarde recolhia-se no pinhal, junto à praia da Floresta.»

OS FARDOS

«A abertura de um fardo era um momento solene a que nem todos tinham acesso. Só os melhores clientes, aqueles que os vendedores conheciam bem, conquistavam o direito de ser chamados para escolher os melhores artigos dos famosos molhos de roupa vinda da América. (…) Ir aos fardos – também conhecidos por Fardex, Pierre Fardin ou, de forma menos prosaica, “boutique cu no ar” – assemelhava-se a um passeio pela feira, com pilhas de roupa no solo.»

O BACALHAU DO VILELA

«Antes de morrer, o velho Vilela fez um pedido a Octávio Lopes: acontecesse o que acontecesse, nunca poderia revelar o segredo que ele lhe contara tantos anos antes. Queria que a receita que lhe dera fama em Angola desaparecesse com ele. E a única forma de o conseguir era exigir silêncio eterno ao grupo restrito a quem ensinara a preparar o célebre “Bacalhau à Vilela”. Octávio prometeu-lhe sigilo e disse-lhe que descansasse. Nunca quebrou a promessa. (…) Todos davam o seu palpite, mas o mais recorrente era dizer que o velho demolhava o bacalhau em leite. Em Luanda, ir ao Vilela era um ritual.»

PARA NÃO ESQUECER

A pergunta perseguiu-me durante anos. A pesquisa e a escrita de um livro sobre a ponte aérea de Angola para Lisboa em 1975, e de outro sobre a integração dos portugueses que vieram de África, levaram-me a entrevistar muito mais de cem pessoas que recordavam esse tempo com ardor. A cada conversa, fui-me deixando embalar pelos pregões das quitandeiras, os cheiros da fruta madura e o aroma de maresia que me descreviam. E a pergunta não me largava. Ouvia falar da rádio, dos cinemas e das farras, mas não passavam de pormenores dispersos. E eu continuava sem resposta. Afinal, o que é que aquela cidade tinha para enfeitiçar de tal maneira quem lá viveu? Pensei dedicar-me à investigação logo em 2012, mas o projeto acabou adiado até há dois anos. Queria fazer um livro que não deixasse dúvidas sobre o magnetismo de Luanda e, para isso, precisava de ler, ver e, sobretudo, ouvir quem ainda tinha bem presente o que o apaixonara no passado. Precisava de uma lista de costumes, acontecimentos e espaços que fizessem parte do ADN daquela cidade nos últimos anos do colonialismo.

Mais do que enumerá-los queria encontrar quem pudesse contar na primeira pessoa os momentos em que ali fora feliz. Por uma questão de rigor – e porque, ao fim de quarenta anos, é natural que a memória pregue partidas –, recolhi documentos, mapas e anúncios vários, e li um infinito rol de recortes de uma imprensa omnipresente na vida da colónia. Depois, os contactos foram surgindo um a um: alguém conhecia alguém que conhecia alguém. E, aos poucos, erguia-se a maqueta da cidade. Lá estavam bairros, quarteirões, machimbombos, lojas, mercados, restaurantes, empresas, personagens e praias que faziam parte do património de todos. As histórias ganharam outra dimensão com as fotografias cedidas por entrevistados e encontradas em arquivos públicos que guardam verdadeiras relíquias.

O resultado é um livro para ver, ler e recordar os doces anos em que o espaço não tinha fim e os dias morriam devagar num paraíso tropical.

*Rita Garcia nasceu em Lisboa em 1979 e é jornalista desde 2000. Fez parte da redação da revista Focus, colaborou com o DNa e foi repórter da Revista Sábado durante dez anos. É freelancer e colabora com a Notícias Magazine, o Observador e a revista E. Luanda Como Ela Era – 1960-1975 é o seu terceiro livro, depois de SOS – Os Dias da Ponte Aérea e Os Que Vieram de África (ed. Oficina do Livro).