Chega de saudades

Notícias Magazine

Em 1958, o Brasil foi pela primeira vez campeão do Mundo de futebol, Oscar Niemeyer começava a traçar Brasília e Adalgisa Colombo foi Miss Mundo, calando a afronta de, anos antes, Martha Rocha ter ficado em segundo lugar por os americanos lhe encontrarem uma polegada a mais nas coxas. Poderoso, criativo e com formas como devem ser, naquele ano o Brasil foi feliz. Tão feliz que muitas décadas depois um jornalista escreveu um livro com este título: “Feliz 1958: O Ano Que Não Devia Terminar”.

Nesse ano, ainda, João Gilberto lançou o disco de 70 rotações com a canção Chega de Saudade. Quando o escritor Ruy Castro escreveu a história da bossa nova serviu-se desse nome. O livro Chega de Saudade, um ícone da música brasileira, em vez de ser uma reação contra a bossa nova, como o título sugeria, relançou-a. Isto é, dizer que se quer esquecer é um sintoma de boa e ditosa memória. Já estou também aí: chega de saudades da semana que acabo de viver. Esta crónica é a última sobre o extraordinário que acabo de viver.

Domingo passado, 20h08. Soube logo que era importante a lesão de Cristiano Ronaldo. Não grave, coisa de o mandar para o estaleiro muito tempo, o que, confesso, naquele momento, era a última das minhas preocupações. Os meses a vir não contavam – o meu prazo de vida, da vida que me interessava, era de 90 m, talvez 120, no máximo mais uns penáltis… Por isso, eu soube logo que a ferida de Cristiano não era um drama, era uma tragédia, porque esta distingue-se daquela por ser definitiva. A pancada cirúrgica do francês matara-nos.

Não, não sou dado a choros fungados e arrancar de cabelos. Nas pancadas fortes fico curioso sobre mim próprio. Então, o que pensei foi estar no meio de um filme. “Está lá em cima [onde deve ser o céu da UEFA] um gajo a escrever um guião fantástico”, disse-me. Não olhei à volta, não queria, além de bater a bota, dar ar de acossado. Então, deixei-me conduzir pelo dramaturgo dos futebóis, fingi-me desinteressado como Patricia Highsmith me ensinou a ler os policiais dela. Sim, Ripley, a sua personagem, estava à beirinha de ser apanhado, já não podia safar-se, mas eu sabia que alguma saída havia de se arranjar. E Ripley, de facto, saltava para outro livro.

Entrei pelo prolongamento dentro com a convicção de vir aí uma coisa esquisita. Ela seria sempre trágica (pois, se o CR7 se tinha apagado de vez…), o que eu ainda não sabia era a forma bizarra que o guionista emprestaria ao final. A hipótese mais provável seria um levantamento, talvez até uns murros dos nossos…

Aproveitando a distração francesa a receber a taça, eu já via a equipa portuguesa a sequestrar o autocarro azul deles, indo para os Champs Elysées ou mesmo, se fosse o engenheiro ao volante, até Lurdes. Os CRS cercavam o autocarro, os microfones estendiam-se e os projetores apontavam para o porta-voz português. Se este fosse o William, só queríamos a Torre Eiffel vestida de verde e vermelho e a piscar devagarinho. O pior era se fosse o Quaresma: tá bem, fiquem lá com a taça, mas ele exigia enganchar o pescoço do Hollande com o braço direito, enquanto lhe dava uns carolos na careca com a mão esquerda. Em prime-time, na TF-1.

Já sabem que acabou com o golo do Éder e nós campeões. Nunca esperei final tão estranho, mas o essencial não me surpreendeu: sempre havia um guionista fantástico. Esta semana nunca devia acabar, mas chega de saudades. Talvez no verão de 2018, eu retome esta semana e compare felicidades, a europeia com a mundial.

[Publicado originalmente na edição de 17 de julho de 2016]