Casca dura e alergias

Notícias Magazine

Sou alérgica a conchas. Lábios inchados, coceira na garganta, vermelhidão no corpo. Cascas duras do mar, longe do meu palato. Nem mexilhões, nem amêijoas, nem nada que aprisione um corpo.

De repente, ganho consciência de que também sou alérgica a conchas figurativas e que passei a minha vida toda a evitar prender‑me a couraçados. Especialmente se esses couraçados servirem para albergar grupos de pessoas que pelejam entre si. Há uma reação qualquer que o meu corpo tem e que é imediata, sempre que me tentam encaixar numa armadura de dogmas partilhados que nunca se questionam.

Pois, é precisamente a isso que sou alérgica. A conchas. Literalmente e figurativamente. Se comer um bivalve, morro. Se engolir ideias sem as questionar, morro também.

Não sei de onde me virá esta alergia. Provavelmente, armando‑me em psicóloga em causa própria, dos tempos em que o grupo das meninas fixes e bonitas me isolou e me gozou, fazendo gala do facto de eu não ser como elas e de nunca poder pertencer a tão distinto grupo.

fotoabsetembroColocaram‑me no grupo dos que não se encaixam em grupos, por mais que tentem. A minha resposta foi tão visceral, que ainda hoje procuro ativamente fugir de vínculos a conjuntos determinados de pessoas que partilham um mesmo modo de agir.

A irónica sina é que acabo por pertencer também eu a um grupo: o das pessoas que não se inscrevem em nenhum grupo. Mas de todos os grupos que conheço, este é o melhorzinho para mim, porque é onde moram os inadaptados e os freaks. Os bizarros, em bom português. Como eu, claro, a começar pelo apelido.

As conchas isolam, mas também protegem e, às vezes, fazia‑me falta uma casca mais dura, admito. Só que concluo, com alguma melancolia, que não há maneira de alguma vez a concha me vir a solidificar.

É que aqui entre nós, que ninguém nos ouve, o que eu quero mesmo é sentir que pertenço a alguma coisa. Só não gosto que essa coisa a que quero pertencer me aperte. Tem de ser bem grande, para eu me sentir livre. E bem vasta, para sentir que tenho muitos caminhos.

Um ninho, essa coisa tem de ser como um ninho. É isso. O sítio que nos alberga até aprendermos a voar e onde voltamos, depois de um dia a pairar livres, para descansar. O meu poiso fofo e quente, feito de restos de natureza reciclados e a que foi dado uma nova forma e um novo propósito.

Nem sempre é a casca dura que protege mais. Aceito o meu destino, mas questiono-o, sempre. Quero poder voar para fora do ninho quando me apeteça.

(Fotografia Ana Bacalhau)

[Publicado originalmente na edição de 18 de setembro de 2016]