Até ao último verão

Há 30 anos, uma explosão na central nuclear de Chernobyl causou a maior tragédia radioativa da história. A 50 quilómetros do local, Ivankiv ainda lhe sente os efeitos e agradece o programa Verão Azul, que já trouxe a Portugal mais de 120 crianças ucranianas para umas férias de sol e mar.

Há um ano, pela primeira vez, Viktoriya Shevchenko chegou à casa dos Vasconcellos Sá atemorizada. Era uma menina magra, bastante formal para os seus 9 anos, com cabelo muito abaixo da cintura e olhos grandes. Quem eram aquelas pessoas simpáticas, Miguel, Conceição e Inês? Gostariam dela? E ela deles? Jurou ser cautelosa, mas deram-lhe iogurtes, que nunca tinha comido. E gelado. E amor. Nenhum dos quatro supunha poder vir a amar tanto um estranho, mas foi acontecendo nas cinco semanas que Vika cá esteve, devagarinho.

«Neste ano fui eu buscá-la ao aeroporto a 17 de julho, os meus pais estavam a trabalhar. Quando me ouviu chamá-la, largou a mala e voou para mim, a abraçar-me e a dar-me beijinhos», emociona-se Inês. Não são só as crianças de Chernobyl que cá se regeneram dos efeitos do desastre nuclear de há 30 anos. Ter de novo Vika consigo tornou-se o momento mais intenso na vida desta família.

«Criam-se laços muito fortes», confirma Fernando Pinho, comercial na Liberty Seguros e o responsável pelo projeto da seguradora, Verão Azul, que todos os verões traz a Portugal um grupo de crianças ucranianas, entre os 6 e os 16 anos, para umas férias de sol, iodo e boa alimentação, em famílias estruturadas – uma raridade para a maioria. «Um advogado amigo meu especialista em seguros, Ignacio Hebrero, tinha um programa idêntico desenvolvido em Espanha. Calhou estar cá a trabalho em 2007, falou com o nosso administrador, José António Sousa, e pensámos que podíamos fazer igual no país.»

Em 2009 vieram 13 crianças, após o administrador pôr Fernando a liderar e atravessarem um mar nunca antes navegado de burocracia. Desta vez são 38. Chegam de Ivankiv, a última cidade habitada antes da zona proibida, e de aldeias muito pobres em redor: Fenevychi, Obukhovychi, Sukachi, Shpyli, Termakhivka, Musiyky, Zaprudka. «Mesmo Ivankiv dificilmente pode ser considerada uma cidade. Já lá fui uma dúzia de vezes e o que ainda agita a economia é um mercado de rua sujo e um motel de beira de estrada inenarrável a que chamam hotel.»

É tudo desolador e difícil desde que o quarto reator da central de Chernobyl explodiu a 26 de abril de 1986, libertando sete toneladas de combustível nuclear e radiações cem vezes superiores às das bombas de Hiroxima e Nagasaki. «Não sei como continuam ali a viver quando Kiev fica a uns 70 quilómetros e tem tudo.» O pontapé no estômago nunca diminui, por mil vezes que Fernando Pinho volte lá. «Já devia estar imune, mas ainda me dói muito», diz.

Em outubro de 2015, a preparar o Verão Azul deste ano, viu as condições em que três crianças órfãs ficaram a viver com um irmão mais velho depois de a casa arder num incêndio: a mãe salvou-as, voltou para tirar a avó e o teto caiu-lhes em cima. Conhece bem os meninos a viver só com um dos pais porque o outro morreu, foi para a guerra ou se perdeu para o alcoolismo e as redes de prostituição (no caso das mulheres jovens).

«Lá, o pilar daquelas famílias é a babushka, a avó.» Os avôs foram sucumbindo às radiações, ao álcool, à dureza do clima: verões infernais alternados com Invernos de 25 graus negativos, em que o frio e a neve reclamam até a alma. Os pais, na casa dos 30 a 40 anos, começam agora a dar sinais de cancros na pele, na tiroide, nos pulmões, o que faz dos filhos – um universo de duas mil crianças com problemas digestivos, cardíacos e sanguíneos – candidatos prováveis no futuro. «Ivankiv é o pior lugar do mundo para morar pelo ar que se respira.» É esse justamente o ADN deste projeto: trazer o máximo possível de meninos de lá, integra-los em famílias portuguesas de norte a sul – entre as quais a do jornalista que mais sabe de Hollywood, Mário Augusto – e renovar-lhes a saúde com doses generosas de carinho, comida variada e banhos de sol e mar.

A receita é seguida à risca por Carlos e Gina Viola com Sergey Karas, o seu menino. «Veio para nós com 7 anos, sem entender a língua, muito frágil e envergonhado. Chorava e comia de cabeça baixa, até que a cumplicidade surgiu», conta a auxiliar de ação educativa numa creche em Peniche, apaixonada por crianças.

Ficaram com Sergey quando o casal de acolhimento de 2009 teve bebé e desistiu no verão seguinte. Gina acha que o menino lhes estava destinado, visto nenhum saber já viver sem ele. «É muito meiguinho e brincalhão. Anda sempre atrás de mim aos beijinhos e a pregar-me sustos», ri-se.

Aos 14 anos, conhecem-lhe os gostos como se fossem os dos filhos João e Nuno, de 28 e 22: adora fruta, sardinhas, camarão, gomas e até legumes, mas detesta sopa e lavar os dentes. Elogiam-lhe o português com que diz que «a Gina é a mãe de Portugal» – e lê-se-lhe nos olhos esta verdade. Levam-no ao Algarve, às Berlengas, às compras, aos carrinhos de choque, às festas de Nossa Senhora da Boa Viagem, aonde ele quiser.

«O Sergey nunca larga o Nuno, copia-o em tudo. Têm uma relação muito forte os dois», revela Carlos. Gina faz que sim, embevecida: «É muito querido. No primeiro ano estava a ver que não o deixavam embarcar, levava a mala cheia de atum, ananás e pêssegos em conserva para os familiares.» Carlos conhece-os pessoalmente: a babushka, um tio deficiente devido à radioatividade, uma irmã de 20 anos a estudar Belas-Artes em Kiev e os pais, que sobrevivem do que cultivam (não podem vender nada por causa da contaminação) e ainda recebem um complemento de 25 euros mensais a trabalhar numa fábrica de batatas fritas. «Quando deixar de ter idade para o programa, desde que queira vir, vamos nós buscá-lo. Bem basta ir-se embora a 21 de agosto: se eu fico triste, a Gina fica deprimida. Há sempre choradeira.» A mulher replica: «E há choradeira à chegada, mas é que, quando ele vai, a casa fica mesmo vazia.»

Também em Peniche, Hernâni e Maria João Leitão estão dispostos a ir buscar a sua Anya Kot ao fim do mundo, se for preciso. «É a nossa neta mais velha, uma segunda filha. Enquanto ela tiver vontade, estamos cá para resolver», garante o gestor comercial reformado da Liberty Seguros. Anya retribui o sentimento: «Tenho saudades muito grandes deles. São a minha família, parte do meu coração.» Os três sabiam que o projeto termina aos 16 anos, um fósforo. Aos 17, só veio porque o administrador José António Sousa a adora e por falar bem português, ajudando os mais novos a integrarem-se. «Estou a tirar o curso de Turismo e Gestão Hoteleira, depois queria vir para Portugal», reconhece a adolescente. Tudo para ajudar a mãe a melhorar o rendimento frugal de professora na escola de Musiyky. Maria João mal acredita que a miúda magrinha e aterrorizada que um dia lhe aterrou em casa com uma anemia congénita se tenha transformado nesta mulher linda.

«Lembro-me dela aos 9 anos, rendida ao mar e a olhar com estranheza para a comida. Um dia fiz-lhe arroz de polvo e ela chorou ao ver os tentáculos espalhados no prato.» Anya ainda não é capaz de comer moelas, em contrapartida é fã de bacalhau. «Também me lembro que passava as noites sentada à mesa da cozinha, a jogar às palavras com o nosso neto João, agora com 11 anos. Ele anunciava que quem perdesse era uma batata podre, ela ganhava-lhe sempre e ele chorava.»

De dia iam à praia, a Évora (onde mora a filha), ao Algarve, às Berlengas. «Foi lá que provou a sua primeira bola-de-berlim, a gritar: “Maria, gosto tanto de bolas-de-berlenga”.» Hoje visitam os locais históricos do país e esperam que a irmã Anastasiya, há dois anos com uma família de Vila do Conde, ganhe a mesma vitalidade. «A Anya telefonou-lhe há bocadinho e ela despachou-a num instante porque ia para a piscina, logo lhe ligava. E eu acredito piamente que nada é por acaso, nada», conclui Maria João, comovida. «A Anya estava preparadinha para nós.»

Segundo Fernando Pinho, um estudo francês provou que por cada cinco semanas que as crianças de Chernobyl cá passam ganham um a dois anos de vida.

«Isso não tem preço», sublinha, recompensado, apesar de ficar um feixe de nervos em todas as vindas. Os quilos de burocracia e autorizações dariam cabo de alguém menos determinado, mas ele lá se articula com a monitora Inna Sheremet, funcionária do centro estatal Doviryia, onde as crianças têm de estar registadas.

«À Inna cabe a dureza de escolher as que ficam e as que vêm, normalmente entre as mais pobres.» Pela sua parte, Fernando recebe Kateryna Ponomarenko no Porto desde que tinha 6 anos e admira-se de a ver com 14, quase tão alta como ele. «A mãe largou-a quando tinha 3 anos e o irmão 8. Mudou-se para Kiev, sabe-se lá a fazer o quê, e deixou-os com o pai, que por sorte é um tipo impecável e a adora.»

Ainda assim, Fernando receia por ela, por ser tão bonita. «E voluntariosa», acrescenta Graça Pinho, sorrindo à jovem. «No primeiro ano chocámos porque teimava em vestir roupa que não era adequada, mas já não custa nada.» Kateryna tornou-se uma lufada de ar fresco nas suas vidas, da mesma forma que o foi nas dos Vasconcellos Sá em 2015.

«Quando os Pinho tiveram de ir a São Paulo ver a filha e o neto recém-nascido, na altura a viverem no Brasil, o meu irmão ficou com ela no verão», conta Miguel Sá. Enquanto a família se socorria do Google Tradutor para se entender com Viktoriya, tímida e recém-chegada, Kateryna desfiava as asneiras de que se lembrava a Inês, a «prima» temporária doze anos mais velha do que ela, convertida numa espécie de ídolo para as mais novas. «Uma é doce, muito meiga; a outra vaidosa e desenrascada. Criou-se uma relação muito gira», reconhece Conceição. «Temos uma casa com piscina no Alentejo e passavam as três o dia na água a comer morangos de uma tacinha – uma estreia completa para a Vika.»

Ninguém na família Vasconcellos Sá trabalha na Liberty, mas Inês viu uma reportagem na televisão e não descansou até os pais conseguirem acolher uma menina em Alfornelos, Amadora. «A direção do projeto esteve connosco, assegurou que reuníamos as condições e tratou da organização e da viagem [na ordem dos 50 mil euros anuais]», adianta Miguel. A fase seguinte foi agir com o coração.

«A Vika não tomava duche, não se agarrava a nós, não trazia uma escova de dentes. E de repente era nossa», explica Conceição, que a vestiu e adotou dos pés à cabeça. Inês cede-lhe o quarto, leva-a à praia, ao cinema, ao parque, a comer gelados, à Baixa de metro, dá-lhe mimos – já não vivem uma sem a outra. Diz que as referências dela são a babushka e a tia Ilona, que tem Skype e mora em Kiev com o primo Vadim: a mãe deixou-a por outro homem, do pai nunca se ouviu falar. Quanto aos Sá, choram só de pensar na despedida. «Ela é a melhor coisa que nos aconteceu.»