Arame farpado

Notícias Magazine

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Transcorreu já bastante tempo desde o dia em que reparei que a vigilância à sinagoga do meu bairro era assegurada por um cão pastor-alemão corpulento e ágil. Vi-o com as orelhas arrebitadas, por detrás do pequeno muro que rodeia o templo, e lembrei-me das imagens dos campos de concentração em que animais quase iguais àquele eram atiçados para amedrontar cidadãos cujo crime consistia em professarem o credo que se pratica na sinagoga ou pertencerem a determinadas raças (por muito que, entre seres humanos, esta seja uma forma de distinção ainda mais estúpida do que a discriminação religiosa).

Pareceu-me existir uma ironia involuntária na ideia de entregar a defesa de um templo hebreu a um pastor-alemão, mas não voltei a pensar no assunto. Só o recordei depois de ter constatado que o cão passou a contar com a ajuda de uma alta rede metálica com arame farpado no topo – e outra vez me lembrei das cercas que delimitavam os campos do Holocausto, tão indiscriminadamente semelhantes às que depois dividiram a Europa e que agora a rodeiam para que o estrangeiro não nos invada com a diferença e esperança de quem procura um futuro novo. Da última vez que olhei para a sinagoga do meu bairro era shabat e estavam três rabinos à porta, aguardando os crentes para a oração. Soprava uma brisa do Norte que lhes agitava os talit de seda, mas não foi essa a razão do meu arrepio (nem a forte impressão que a imagem de três judeus dentro de uma vedação ainda provoca). A alta cerca de arame farpado do templo constitui, antes de tudo, um gesto de segregação: de um lado ficam os bons e puros, do outro os maus cuja bárbara invasão se pretende evitar.

Este mesmo juízo perverso e maniqueísta presidiu à edificação de vedações em Ceuta e em Calais, no Sul da Hungria, na fronteira entre Israel e a Palestina ou no Norte do México. Em lado nenhum, porém, a construção de muros é suficiente para resolver os problemas que ali se enfrentam. Sempre que o arame farpado e os militares segurando pastores-alemães pela trela pareçam ser a solução, mais gente tentará contorná-los, enfrentando perigos cada vez maiores – e morrendo na praia como Aylan ou as quatro outras crianças sírias que, nos primeiros quatro dias deste ano, perderam a vida no Mediterrâneo.

[Publicado originalmente na edição de 24 de janeiro de 2016]