Ama-San, ou as mulheres do fundo do mar

Quando se cruzou com a excecional história das mulheres japonesas que mergulham em apneia para pescar no fundo do mar, Cláudia Varejão soube que tinha de filmá-la. Mas Ama-San é um filme sobre a normalidade. A normalidade de mulheres que são heroínas – no mar, onde arriscam a vida, e em terra, aonde voltam para vivê-la. A primeira longa-metragem de Varejão estreou-se, em Portugal, no DocLisboa. E venceu.

Quando as ama‑san mergulham em direção ao fundo do mar, fazem‑no com a normalidade rotineira de um trabalhador citadino que usa os transportes públicos até ao seu destino. Nem o mergulho é um mergulho, antes um salto pouco espetacular, sem artifícios olímpicos e antecedido de uns comentários jocosos sobre o tempo que falta até ao almoço. Uma por uma, as ama‑san vão desaparecendo sem despedidas, como se submergir fosse tão natural quanto respirar. Afinal, este é seu o trabalho, o sustento das suas famílias, a tarefa que tem de ser feita. Quando as vemos assim, comportando‑se mecanicamente, quase esquecemos que são as míticas ama‑san, as mergulhadoras que passam largos segundos no fundo do oceano sem garrafas de ar comprimido, em busca de algas, ouriços e abalones.

Fazem‑no há séculos, desde sempre e para sempre em apneia, desafiando os limites do corpo humano, as ameaças do mar e o papel tradicional da mulher japonesa, opondo‑se a outro símbolo feminino do país, as gueixas. Há séculos que alimentam a imaginação de artistas e antropólogos, enchendo páginas de romances, telas ou fotografias como as do italiano Fosco Maraini que as captou quando ainda mergulhavam nuas, punhal de madeira preso à tanga que lhes cobria o sexo, espécie de amazonas e irmãs guerreiras.

Desconhecendo todas essas representações, a realizadora portuguesa Cláudia Varejão soube que tais mulheres existiam ao ler um livro de poesia de uma amiga que dedicou alguns versos às ama‑san.

«Pesquisei e fiquei impressionada. Mulheres que mergulham em apneia para encontrar pérolas. Parecia demasiado poético para ser verdade», diz a realizadora.

Apesar de o ofício estar a desaparecer e de já não se pescarem pérolas, Cláudia Varejão descobriu que estas mulheres continuam a recusar a utilização das máscaras de oxigénio e que, apesar de todos os registos, ninguém se tinha ainda dedicado a contar a sua história em filme. A realizadora apressou‑se e concorreu a uma bolsa da Fundação Oriente, que decidiu financiar a viagem, mas com uma condição. «Telefonaram‑me a pedir provas fotográficas de que estas mulheres existiam mesmo para que a bolsa não fosse em vão», diz. Cláudia partiu para o Japão em 2013 numa viagem exploratória para o documentário que acabou por dar origem a um livro de fotografias e a uma exposição no Museu do Oriente, em 2015.

Nessa primeira viagem passou por várias vilas onde ainda existem grupos de amas até escolher a pequena vila piscatória de Wagu, na península de Shima, como cenário para o filme e três mulheres que representam três gerações de mergulhadoras – Masumi, Mayumi e Matsumi – como personagens principais. «Houve uma empatia com a vila assim que cheguei. Quando perguntei se podia fotografa‑las, a Mayumi, presidente da associação das amas local, disse‑me que podia ir no barco com elas no dia seguinte», lembra a realizadora.

De regresso a Portugal, Cláudia Varejão conseguiu financiamento do Instituto do Cinema e do Audiovisual, associou‑se à produtora TERRATREME e partiu de novo para o Japão, vivendo sem guião em Wagu, entre as amas e acompanhada da assistente/ tradutora, Aya Koretzki, e do operador de som luso‑japones Takashi Sugimoto.

O resultado é o filme Ama‑San, que se estreou em Portugal no passado dia 22 de outubro no DocLisboa, tendo saído vencedor da 14ª edição do festival, ao lado de Downhill, de Miguel Faro, e deverá estrear-se nas salas do Cinema Ideal ainda neste ano e quer chegar a outras salas do país. Antes de poder ser visto pelo público português, Ama‑San estreou-se em vários festivais de cinema internacionais, tendo sido premiado em Karlovy Vary, na República Checa. Ama‑San é um filme «sobre estas mulheres, sobre a sua fragilidade e a sua bravura, a sua capacidade de serem ao mesmo tempo cuidadoras e caçadoras, uma caraterística que geralmente não atribuímos ao género feminino».

Estas mergulhadoras reverteram o papel da mulher e do homem em determinadas comunidades num Japão muito conservador.

Nas décadas de 1960 e 1970 o trabalho das amas tornou‑se de tal forma lucrativo que em muitos lares os homens deixaram de trabalhar, passando às mergulhadoras a responsabilidade de assegurar a sobrevivência familiar. «Os homens dizem que as mulheres têm mais gordura e suportam mais o frio e é por isso que conseguem fazer este trabalho», explica Cláudia Varejão, acrescentando que o ofício é extremamente perigoso e que as mortes não são raras porque por vezes as mergulhadoras ficam presas nas algas do fundo do mar.

Em nenhum momento se questiona por que razão as amas continuam a arriscar a vida desta forma. No início do filme, uma das personagens aproxima‑se de uma explicação: «Há todo um mundo maravilhoso por entre as rochas. Mas é preciso coragem para o conhecer. Sem monstros não haveria aventura. As mulheres dizem que o trabalho de ama é o inferno. Muitas vezes pergunto‑me por que escolhi um trabalho tão duro.

Já aconteceu tanta coisa. Ao olhar para trás, vem‑me as lágrimas aos olhos. Em japonês a isto chama‑se harabanjo. São os mares agitados que sobem e descem, e que podem levar‑nos a todos. Todos os dias são difíceis, mas todos os dias aprendo.»

A bravura destas mulheres é o ponto de partida de Ama‑San. Apesar disso, a sua coragem não é sublimada em nenhum momento porque não é necessário sublimá‑la. Basta ouvir o silêncio do fundo do mar quando Mayumi se desembaraça das gigantescas algas submarinas e ataca o pedregulho que esconde o valioso abalone. Fá‑lo sem hesitações, como um leão que ataca e devora uma gazela em minutos, enquanto o espetador se imagina a asfixiar.

As amas preferiram que Cláudia não mergulhasse. Apesar disso, Cláudia pensa compreender a determinação que as motiva, identificando‑se com elas em certos momentos. «É o impulso predador. Tenho aprendido que filmo dessa forma – chego e sei onde quero colocar a câmara. Tal como a Mayumi, um verdadeiro lobo-do-mar, implacável, sem remorsos de caçar todos os dias.» Esse terá sido o único momento em que não pôde colocar a câmara onde quis.

A vivência diária com estas mulheres ao longo de mais de um mês aproximou Cláudia de algumas mergulhadoras.

Essas relações mantêm‑se à distância, tanto quanto a ausência de uma língua comum, a intuição e a empatia permitem. Mas essa proximidade está presente em todo o filme. Apesar de ter estado rodeada por uma equipa que traduzia as interações com as mergulhadoras, Cláudia deixou que a intuição a guiasse. «A comunicação está tão além da linguagem. Eu entendia tudo sem entender. O facto de não falar japonês até facilitou. Elas ignoraram a minha presença e a câmara, têm uma relação maravilhosa com ela», diz.

Numa das cenas mais marcantes, Mayumi brinca com o neto dentro de uma banheira e os dois falam sobre natação e mergulho. Cláudia Varejão seguiu avó e neto para a casa de banho, intuindo que o momento podia dar origem a conversas sobre a água. A câmara captou a enorme ternura, mas Cláudia não entendeu a conversa. No visionamento percebeu que não se tinha enganado.

Na verdade foi a intuição que levou Cláudia Varejão ao cinema. Nascida nos anos 1980, quando as câmaras de vídeo se tornaram acessíveis a muitas famílias de classe média, Cláudia pediu uma à mãe para registar os últimos momentos da vida da avó. Mas o interesse por esse mundo cresceu em paralelo com um outro que pareceu mais lógico a Cláudia, criança atlética e nadadora de competição. Foi por isso que estudou Educação Física. «Eu tive uma vida muito simples. Não vim de uma família onde se consumisse muita cultura. Fui seguindo instintivamente o que fazia melhor.

Provavelmente como as Ama. Então nadava. Em Lisboa, conheci uma série de pessoas ligadas ao cinema e como eu andava sempre com a câmara atrás diziam‑me: “Vai aprofundar isso.” Vi muitos filmes e estudei‑os, mas não de forma académica», diz. A realizadora diz que, apesar de as ama-san terem consciência do respeito que inspiram no Japão, não se mitificam, encarando o que fazem como um trabalho igual aos outros. Cláudia Varejão escolheu não mistifica-las também, focando‑se na sua normalidade e revelando‑nos a sua intimidade.

Quando não estão no fundo do mar, as ama‑san habitam um outro mundo que também é só delas: a cozinha, o espaço onde os filhos e os netos tomam as refeições, o cabeleireiro onde trocam preocupações e fofocas com outras mulheres, o bar onde cantam karaoke para desenvolver os pulmões, o espaço onde convivem após os mergulhos e que é interdito aos homens (que quase não aparecem no filme), a casa de banho.

Passamos mais tempo com Masumi, Mayumi e Matsumi em terra do que dentro de água. Conhecemo‑las melhor como cuidadoras do que caçadoras. Em terra, onde são consideradas banais, tornam‑se protagonistas. «Queria fazer um filme sobre a normalidade. Nós somos todos heróis do quotidiano, somos todos excecionais na nossa normalidade», diz Cláudia. E no final, é assim que vemos Masumi, Mayumi e Matsumi, pescadoras de tesouros em apneia, e, não menos importante, esposas, mães, avós, amigas e mulheres. Heroínas do quotidiano, excecionais na sua normalidade.

ENTRE O MAR E A TERRA

Ama-San é a primeira longa-metragem de Cláudia Varejão (o filme No Escuro do Cinema Descalço os Sapatos estreou-se em 2015, mas Ama-San foi concluído antes) e «uma experiência mais bem-sucedida» no sentido que lhe interessa explorar: «Gosto de não ter de pensar o que é o quê – se é ficção ou realidade.»

O trabalho de casting adiciona ao filme uma camada muito subtil, mas que é difícil ignorar – vemos este Documentário como se fosse uma obra de ficção com grandes atrizes, exímias na arte com que transmitem a melancolia de todos os dias. Ama-San não é puramente etnográfico.

A realizadora dirigiu as personagens em dados momentos. Apesar dessa sensação dúbia e do talento em bruto de Mayumi, cuja elegância a câmara não consegue evitar, as ama-san são mulheres de carne e osso que levam vidas simples.