Agora há pranchas para surfar em terra

Quem teima que o surf só se faz na água é porque não conhece as pranchas para surf no asfalto de Ricardo Marques. Não, não são skates comuns – não havia nada assim no mercado. Além de que estes são de cortiça, sustentáveis, amigos do ambiente. A Bio Boards ainda vai andar a correr mundo.

Os imprevistos costumam ser a parte mais saborosa das histórias e a de Ricardo Marques não é diferente. Estava no Rio de janeiro em 2013, a fazer a tese na Pontifícia Universidade Católica como estudante de Erasmus, sol e ondas e planos para o futuro. Mais um pouco e seria engenheiro do ambiente pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, mas e depois? Que perspetivas teria em Portugal? Ia poder trabalhar para salvar o mundo? E, tão importante como isso, sobrar‑lhe‑ia tempo para surfar? Era um homem de duas paixões, ambiente e pranchas. Não queria abdicar de nenhuma – não conseguiria. E se encontrasse uma forma de cruzá‑las, fosse lá como fosse? E se fizesse o que ainda ninguém tinha feito? E se?

«Andava pelo Rio e via multidões de skate e a surfar, um alvoroço impressionante», conta Ricardo, 29 anos, praticante de ambas as modalidades desde os 9. «Eu próprio arranjei skate e uma prancha de surf nos seis meses que estive lá. Estava sempre a pensar que devia haver maneira de criar oferta para aquele universo de um modo sustentável, com materiais nacionais e o mínimo impacte ambiental.»

No dia em que viu passar um sujeito com o que lhe pareceu ser uma prancha de cortiça (afinal, só era revestida), decidiu que o turbilhão que trazia na cabeça era viável. Ia perceber como materializar as suas bio boards – um bom nome para um negócio biológico pioneiro. E viria a fazê-lo tão bem, de facto, que a marca vai agora dar o salto para a internacionalização numa viagem de dois meses pela Europa, que partiu do Porto a 9 de setembro para divulgar as pranchas em mercados estratégicos.

«Ainda em 2013 fiz os primeiros esboços e o primeiro protótipo: uma espécie de prancha de skate diferente, toda de cortiça, com um sistema inovador de três rodas em que a da frente gira 360 graus, permitindo uma sensação real de surf em terra.»

Olhando para trás, os pormenores do tempo dedicado à tese sobre remoção de metais pesados de águas residuais perdem‑se no esquecimento, mas não aquele clique que sentiu no Brasil. Num momento decidiu o seu futuro, parecia coisa de filme. Queria regressar a Vila Nova de Gaia e lançar-se ao trabalho para ver o que dali saía. Foi assim que lhe sucedeu improvisar uma oficina no quintal da avó materna, junto das galinhas (saía barato e era perto da casa dos pais). Em março de 2015, a marca estava oficialmente a vender.

«A minha ideia foi sempre a de construir pranchas de surf. O mercado da Bio Boards é o mercado do surf», sublinha o empreendedor, a entrar na etapa de desenvolver pranchas para o mar após constatar que as do surf no asfalto estão bem lançadas. «Só comecei por estes skates por não ter nenhuma experiência em técnicas de carpintaria. Sendo mais pequenos, sempre desperdiçava menos materiais caso os estragasse, como acontecia ao início.»

Hoje o que está incrementado são essas famosas pranchas para o treino funcional de surf em terra (nunca concebeu nenhum skate de quatro rodas), de vários tamanhos, com preços que variam entre 200 e 260 euros. Já tem também algumas feitas para a água, igualmente ecológicas, embora ainda não comercializáveis por estarem longe do ponto de qualidade que definiu para todas as suas bio boards.

«Os skates inteiramente de cortiça funcionam bem em seco, são amigos do ambiente e muito resistentes. Nas pranchas de surf, por outro lado, levanta‑se a questão da impermeabilidade. Até podem resultar em cortiça, mas se tiverem de levar duas camadas de fibra de vidro no revestimento lá se vai a sustentabilidade», diz. Por isso não se vincula a nenhum material: tanto pode servir‑se da cortiça (reciclada de rolhas de garrafa e restos de corcha), como de cartão, bambu, madeiras diversas ou outros que calhe encontrar. «O mais certo é as de surf virem a ser de madeira, logo se vê. A marca tem esse compromisso de só usar matérias-primas recicladas, recicláveis, reutilizáveis e biodegradáveis. A partir daí é tentativa e erro.»

Hoje, a Bio Boards está incubada no Parque de Ciência e Tecnologia da Universidade do Porto (UPTEC), em Leça da Palmeira. Vende para cerca de 200 clientes por ano, angariando uma média de 30 mil euros que lhe permitem não dar prejuízo e investir na expansão. Ricardo continua a ser o cérebro e a cobaia das suas criações, mas já não trabalha sozinho: Diogo Oliveira é seu sócio e o responsável pela gestão operacional da empresa (foram colegas no curso de Engenharia antes de Diogo fazer Gestão na Faculdade de Economia do Porto); Pedro Mendes é o fotógrafo oficial que assegura a imagem da marca; Filipa Ferreira tem a cargo a linha de vestuário de surf que arranca no verão de 2017 (muito eco‑friendly, em cânhamo natural e algodão). Há também a Hempact Organic, empresa parceira que os ajuda a produzir a roupa. Márcio Borgonovo, investigador da ciência do surf, trata da parte dos sensores que validam as semelhanças das pranchas de três rodas com as das ondas.

«O negócio ainda não é sustentável justamente porque não abdico destes testes mecânicos com a All in Surf [empresa do UPTEC que desenvolve tecnologia aplicada ao surf] e o LABIOMEP, onde o Márcio faz análises biométricas para estabelecer um paralelismo entre os dados obtidos numa onda por um surfista e os recolhidos nos nossos skates», adianta Ricardo.

Em terra, a sensação é idêntica à que se tem na água, o que os torna perfeitos para principiantes – podem treinar a técnica sem serem esmagados por uma vaga – e profissionais – que assim sublimam a performance mesmo com mar flat.

«Alguns estrangeiros vêm de passagem e compram‑nos pranchas, mas vendemo‑las sobretudo na nossa página, no Facebook e no site da Surf Total.» Chegou a fazer uma de raiz para o Tony Hawk, o maior skater de todos os tempos, e ele publicou‑a nas redes sociais. «Fiquei orgulhoso, confesso. Por norma só posta coisas sobre os filhos e a sua própria marca, Birdhouse.»

Seja como for, Hawk não é o único a estar de olho na Bio Boards. Em julho deste ano, a empresa recebeu uma menção honrosa no 8º Prémio Nacional Indústrias Criativas Super Bock/Serralves, pelo compromisso de produzir com o menor impacto ambiental possível (entre os dez finalistas de 168 candidaturas). A 7 de setembro no UPTEC, esteve na final da ClimateLaunchpad, a maior competição do mundo na área da inovação ligada ao clima. Também se candidatou – e foi aceite –, em nome da All in Surf, ao programa de incubação Entrepreneurship in Residence, um acelerador de startups da Carnegie Mellon University, em Pittsburgh, EUA. «De 14 de Setembro a 7 de novembro, um de nós vai estar na Pensilvânia a contactar grupos de investigação, especialistas de topo e empreendedores, imerso num ambiente de validação de conceitos e partilha de tecnologias», diz Ricardo. Tudo sobre rodas, portanto.


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