Acreditem ou não, mas já fomos crianças

Notícias Magazine

É fácil imaginar que Deus, quer exista ou não, tenha criado as árvores para as crianças subirem e lembrarem-se para o resto das suas vidas como tudo é maravilhoso visto do cimo de uma macieira. Talvez tivesse outros propósitos, porém este seria seguramente um deles.

Mas um dia crescemos, espoliados dessa visão, e achamos que as árvores servem simplesmente para dar fruto. Assim como achamos que os homens servem para dar dinheiro (e poucos sobem um pensamento para ver como a vida é bonita vista de lá de cima.)

Acabamos por instrumentalizar tudo, até a infância.

Desde que passei a viver no campo que olho com ansiedade para as árvores a crescer, porque no meu terreno não havia nenhuma e isso foi uma tremenda desilusão e concomitantemente um desafio: teria de ser eu a plantá-las. Claro, não fico parado a olhar para elas, mas vou reparando no seu crescimento. Não procuro frutos (ou apenas isso), mas simplesmente o momento em que será possível subir a uma dessas árvores e, de lá de cima, praticar diariamente uma visão atávica e primordial. Espero que se tornem fortes o suficiente para aguentar o meu peso e, se tudo correr bem, suportar a visão de um adulto sem que os ramos se partam perante a incredulidade. Treinar-me-ei assiduamente – porque é preciso fazer desta perspectiva um hábito – para conseguir voltar a ver o mundo com a lucidez que só a verticalidade permite, com a mesma capacidade da criança que, acreditem ou não, já fui. Mas o que mais provavelmente acontecerá, quando as árvores crescerem o suficiente para me permitirem essa visão por entre peras ou ameixas, é o seguinte: pensarei, enquanto recolho os frutos e os contabilizo, que essa ideia não passa de uma ingenuidade atroz.

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Vonnegut tem uma parábola de que gosto muito, uma árvore que, em vez de folhas, dá notas de dólares. As pessoas aproximam-se e gananciosamente tentam recolhê-las, gerando-se imediatamente um conflito sangrento sob a sua sombra. Do sangue das pessoas que morrem a tentar chegar às folhas/ notas, a árvore cria mais dólares. É uma belíssima imagem da sociedade e dá-nos uma ideia de árvore que não se pode ou não interessa deixar subir, privando-nos da visão da criança que, acreditemos ou não, já fomos.

 

(Ilustração de Afonso Cruz)

[Publicado originalmente na edição de 17 de julho de 2016]