Acabe com o pesadelo de pôr as crianças a dormir

O quarto está silencioso e a meia-luz. A cama forrada com lençóis polares e edredão de penas. Os peluches esperam-na sentados, prontos a abraçar. A mãe dava tudo para se deitar no ninho que preparou para a filha, como raio pode ela inventar tantas manhas para não dormir? São umas atrás das outras, todos os dias: tenho fome, quero fazer xixi, um copo de leite, um copo de água, dar outro beijinho ao pai. Não lhe sobram forças para negociar com ela a esta hora da noite. Os jogos em família após o jantar excitam mais a pequena Maria do que a acalmam e Inês já só tem fôlego para experimentar contar-lhe uma história curta. A ver se a entusiasma a ir para a cama com gosto daqui para a frente, sem parecer que está a arrastá-la para a forca.

«Uma história ao adormecer é um misto de ternura, alegria, repouso, encaminhar para o sono e criatividade. E uma excelente oportunidade para, estando a criança já deitada, os pais se abstraírem da intrusiva televisão ou do computador e estarem com os filhos», garante o pediatra Mário Cordeiro, ciente de que dormimos melhor quando nos sentimos seguros. «A presença dos pais, através da voz e dos códigos interpessoais, ajuda a desenvolver a parte emocional do cérebro. Aliás, é engraçado ver que pai e mãe têm geralmente maneiras diferentes de contar a mesma história: as mães seguem mais o livro e não alteram tanto a voz. Os pais inventam e dramatizam, com piadas e vozes teatrais.»

Foi a pensar em crianças como Maria, e nos respetivos progenitores à beira do colapso, que a especialista em sono infantil Filipa Sommerfeldt Fernandes escreveu 10 Histórias Para Adormecer Sem Medos Nem Birras. Há a da mãe girafa que acordava cansada e com o pescoço dorido por dormir toda torta no chão do quarto da filha, que choramingava e chamava por ela a noite inteira. A dos soldadinhos que vivem dentro do corpo do António e não conseguem trabalhar, por ele não dormir como devia. A do Vasco que não queria dormir para continuar a brincar e a viver grandes aventuras com o irmão Afonso – mal sabia ele que é a sonhar, aconchegado na cama, que se tem as mais divertidas.

Ilustração de Filipa Viana/Who

«Adormecer ouvindo uma voz amada pode ser a melhor sensação do mundo», sustenta a autora, adepta desse momento de qualidade ao final do dia por ser dos poucos que as famílias ainda têm por falta de tempo. «Uma história ajuda a criança a entender as situações por que passa. Ao ser contada pelos pais, com calma, permite que se sintonize com este estado de tranquilidade, dando-lhe grande confiança.»

Melhor do que uma história ao deitar, só mesmo dez, que ainda por cima abordam esta problemática de a criança ter de aprender que é hora de dormir e deve fazê-lo sozinha. «As histórias mais indicadas para contar ao deitar devem ser felizes, ter um pouco de magia e sonhos bons. Acima de tudo, devem ser narradas com amor», sublinha Filipa, para quem os pequenos gostam de saber com o que contam, daí os rituais ajudarem na transição para o sono. «Apressamos demasiado os nossos filhos, o que dificulta o desligar da ficha.» Em vez de algo natural, ir para a cama torna-se abrupto, com más noites e consequências que vão além de se ter sono ou mau acordar. «A dormir produz-se a hormona do crescimento, consolida-se a memória e a informação apreendida ao longo do dia. Por outro lado, à falta de sono surgem sempre associadas questões como birras, menor resistência do sistema imunitário, dificuldade na alimentação, desconcentração, maiores alterações emocionais e outras.»

Mário Cordeiro confirma que os problemas do sono têm que ser encarados com rigor, sem minimizar nenhum aspeto. Cada família deve parar para pensar o tempo da sua vida em casa. «A maioria das crianças resiste a ir para a cama por dois motivos: por um lado, o receio de se entregar ao destino e perder o controlo. Por outro, porque têm tanta coisa a fazer que dormir é encarado como uma perda de tempo», explica o pediatra. Há ainda as que querem ficar para «deitar os pais», por acharem que têm tantos direitos como eles, incluindo a hora de irem para a cama. E então entram as histórias para adormecer. «Permitem aliviar tensões, emoções e compreender como o mundo funciona, não só em termos de responsabilidade do que fazemos como do impacto que isso tem sobre os outros. São um momento de gozo, diversão, entretenimento e também de terapia.»

PELA PRIMEIRA VEZ em três anos, é Maria quem pede à mãe que a deite, para ouvir outra vez O Boneco Mágico dos Sonhos Bons, de Filipa Sommerfeldt. Inês faz-lhe rapidamente a vontade, não vá a filha mudar de ideias. «Por incrível que pareça, o stress acabou quando lhe li este conto, há umas semanas, e costurei um pijama com estrelas que brilham no escuro para um boneco que era do meu marido», esclarece mais tarde. Na história, com aquele guardião mágico ao seu lado, a protagonista ganhou uma companhia pela noite dentro e perdeu o medo de dormir. «Com a Maria foi igual. Passou a resistir cada vez menos, até ser ela própria a pedir para a deitarmos. A minha alma está parva.»

Para Leonor Baeta Neves, uma mudança assim explica-se com o sentimento de tranquilidade resultante de sentir a mãe ou o pai junto de si, comunicando. «Entre o ir para a cama e a completa relaxação do sono, é natural haver uns momentos de transição que passam por rotinas como o último xixi, lavar os dentes, vestir o pijama. Mas entretanto há ali um momento crucial», aponta a psicóloga, especialista em desenvolvimento infantil: «A não ser nos casos em que a criança adormece ainda no sofá, e vai ao colo para a cama saltando todas as fases, existe uma altura anterior à chegada do sono em que ficará sozinha.» É aqui que a narração de uma história se torna uma ponte: não sendo nada vivido pela criança nem pelo narrador, liga-os a fantasia. «Do mesmo modo, quando a hora do deitar for interiorizada, sente mais segurança e o desconhecido deixa de assustar, afinal já não é completamente desconhecido.»

Também ela desaprova a ligeireza com que se encara o sono de uma criança pequena hoje em dia, por muito mau que seja os pais não conviverem com os filhos. «A solução não é virar os seus horários de pernas para o ar. Somos biologicamente programados para dormir de noite e uma criança, ser em crescimento, precisa tanto das suas horas de sono regular como de boa alimentação.» Durante bastantes anos, a televisão ajudava passando o Vitinho, a mandar os meninos para a cama antes dos programas sérios. Hoje a sociedade não ajuda nada, lamenta. «São os pais que têm de se adaptar às necessidades dos filhos, não o inverso. É científico que a melatonina regula os ciclos biológicos e requer silêncio e escuro. O nosso corpo aprecia essas regras. Se ainda por cima houver um efeito moral, com a vitória dos bons sobre os maus, tanto melhor.»

A escritora Alice Vieira confere as maravilhas de se mandar os filhos para a cama com uma história curta, em que o herói supera uma série de dificuldades antes do final feliz. «É fundamental para a evolução deles, além de criar vínculos fortes entre miúdos, pais, avós, irmãos mais velhos ou quem quer que seja», afiança a autora, que sempre leu aos dois filhos e depois aos netos, sem abreviar, numa desaceleração dos dias. «As crianças hoje têm todas as maquinetas, iPhones, tablets, mas este é outro tipo de comunicação. A voz de alguém querido é outra coisa.» Mesmo se pensamos que não entendem termos difíceis, fica-lhes o som das palavras. «Há um ritmo de linguagem que lhes faz nascer mais tarde o gosto pela leitura. As lengalengas também não têm sentido nenhum e elas adoram.» E que melhor forma de embalar o sono do que uma história?

 

BONS SON(H)OS
Sono Soninho, José Jorge Letria; Clube do Autor, 2013. 10,90 euros.
Hora de Dormir, Trace Moroney; Porto Editora, 2011. 5 euros.
Histórias Para Adormecer, Vários Autores; Porto Editora, 2011. 12 euros.
É Hora de Dormir, Sam Taplin; Porto Editora, 2011. 6,50 euros.
Bebés Felizes – Vamos Dormir?, Alicia Padrón; Ed. Booksmile, 2012. 6,99 euros.
Dormir Tranquilo, Mário Cordeiro; A Esfera dos Livros, 2010. 16 euros.
Eu Não Tenho Sono e Não Vou Para a Cama, Lauren Child; Oficina do Livro, 2005. 4,90 euros.
As Mantinhas do Sono, Raquel Pinheiro; Ed. Jardim das Histórias, 2014. 12,19 euros.
10 Histórias Para Adormecer Sem Medos Nem Birras, Filipa Sommerfeldt Fernandes; Ed. Manuscrito, 2015. 13,90 euros.
O Coelho Que Queria Dormir, Carl-Johan Forssén Ehrlin; Lua de Papel, 2015. 8,90 euros.