A silly season das tragédias diárias. Oh boy

Notícias Magazine

Não há nada como ficar noites sucessivas a fechar o jornal para ficar consciente daquilo que é inerente à própria vida: o sobressalto do momento em que tudo muda e é preciso reagir. Fechar o jornal quer dizer ir acompanhando texto a texto, página a página, as notícias do dia que termina, completar a capa, tudo encaixado num mosaico com uma lógica interna que torna a leitura mais clara. Os temas mais importantes do dia, depois as páginas de opinião, e então as notícias nacionais, internacionais, de economia, de cultura, de desporto e tudo o que fica pelos interstícios destas categorias. Com fotografias a completar o que é dito, de preferência a dizer mais do que as palavras, com espaço delimitado pelo desenho das páginas, com a publicidade predefinida. Se alguém se atrasa na escrita – ninguém se atrasa, na verdade cada um tem o seu ritmo e às vezes não acerta com o horário do lado fabril da coisa – é preciso soltar umas frases, por vezes gritadas e com palavras que é melhor não escrever aqui e que significam «despacha lá isso».

Pronto, agora está tudo pronto. O jornal está fechado, vamos pensar no dia seguinte e arrumar a tralha.

Mas isso é só uma miragem. Porque o espetáculo das mortes múltiplas chegou e instalou-se como uma doença em que o primeiro suspeito é o terrorismo islâmico. Um camião TIR a varrer um boulevard apinhado de gente em festa, o horror impensável na Côte d’Azur da nonchalance para ser filmada e não para ser cenário de um massacre. A pacatez dos dias de Munique desatinada por rapazes armados feitos máquinas de matar: armas brancas, incluindo machados, armas de fogo. Nesta segunda-feira, à última hora chegaram notícias do Japão: um jovem entrou numa instituição para deficientes e em poucos minutos matou 19 pessoas e feriu 25 com facadas. Tinha decidido que os deficientes não deviam viver. Na terça, o caos começou mais cedo, com dois jovens a ocupar uma igreja, a degolar um padre de 84 anos. Depois um doente matou um médico em Berlim. Depois um tiroteio num centro comercial em Malmö, na Suécia. E a meio da tarde um alerta por causa de um pacote suspeito em Miami.

E a cada ataque desfazemos umas páginas que estavam prontas para a rotativa imprimir, procuramos as informações mais recentes que sabemos desatualizadas em poucas horas. E a cada dia se reforça a banalização de que há quem tenha a firme convicção de que pode, precisa de, deve, matar outros porque têm a pele desta ou daquela cor, porque estão a comer um hambúrguer, porque têm deficiência, porque estão a festejar, porque são católicos ou judeus ou islâmicos, porque são do mesmo país ou porque são estrangeiros, porque estão a ouvir música ou a viver despreocupados. Uns por convicção, outros por perturbação instantânea, outros porque querem ser cabeçalhos dos jornais, por uma vez importantes.

Mas a vida continua, todos os dias. E é preciso ir buscar leite e pão e pensar no almoço e no jantar, e decidir coisas fundamentais e outras simples.

Chega o dia seguinte e as notícias não param, a silly season transformada numa sequência de mortes que atingem pessoas como nós, incautas a passear ou a caminho do trabalho. Não há flores nem velas nem peluches que pacifiquem os que ficam, perdidos e incrédulos perante o acaso trágico que alguém se sentiu no direito divino de criar. I read the news today, oh boy, about a lucky man who made the grade, cantavam os Beatles em A Day in the Life. Oh boy.

[Publicado originalmente na edição de 21 de julho de 2016]