A pergunta

Notícias Magazine

Marta, my dear,

Domingo de Páscoa em Cantelães. Leio a sua carta e busco o fim das aspas, regresso ao título, sacudo as dúvidas – «Deus, estás aí?» você trata-O por tu! Esteja ou não, responda ou não, conceda nova oportunidade ao octogenário com medo de amar ou não, vive perto de si. Não posso dizer o mesmo. Ao longo dos anos arrastei interrogação mais árida por intelectualizada: Ele existe? E mesmo nos dias em que me inclinava para o sim, nunca me ocorreu que pudesse orquestrar amores terrenos, gentilmente discreto colocando esta ou aquela mulher no meu caminho.

Para ser justo, devo reconhecer que julguei possível a epifania em condições muito especiais: nos castelos do Languedoc; em Pirenéus verdejantes; observando os tímidos flamingos da Camargue ou o entardecer sanguinolento de Toledo; recolhido em Sénanque. No fundo, a estranheza que me causava a paz sentida em certos lugares levava-me a atribuir-lhe fonte alheia a silêncio ou beleza naturais, numa palavra, a cobiçar a transcendência.

Pergunto-me se a nostalgia da fé em Deus não me tornava culpado de falta dela no que aos homens diz respeito… A vida ensinou-me que esses momentos de harmonia, em que o mundo se assemelha a um puzzle terminado por mão de criança feliz, não exigem intervenção divina, mas trabalho humano. Duro, por contrariar os desejos de uma sociedade rendida ao efémero, postiço e exterior.

Domingo de Páscoa em Cantelães. Sabemos que um homem morreu, muitos acreditam que ressuscitou. Não sei. Mas o sonho que embalava não temia Caifás, Pilatos ou Cruz, apenas a nossa indiferença. Derrotado por uma pergunta, refugiei-me na verdade histórica de uma afirmação: Jesus esteve aqui. O problema é que esse alívio trouxe pergunta com destinatário bem pouco divino – eu. Fui educado por um cocktail estranho, imagine!, anarquistas cultos sem instrução, velhos republicanos cuidando de esperança sempre jovem e padres indiferentes a batidelas no peito não acompanhadas por prática cristã. Não lhes foi difícil chegar a pergunta sobre o meu futuro – «vais ser um homem honrado ou desiludir-nos?» E para esta não há agnosticismo que me valha, «basta» olhar para trás e etiquetar uma vida.

O seu ternurento octogenário terá de fazer o mesmo e agir em conformidade. Deus dá-lhe uma nova hipótese de amar sem receio. Admitamos que à terceira é de vez, em silêncio dá murro na mesa, «vamos a isso». Mas com quem? Sim, Marta, com quem? Com a mulher que sobre ele derrama o sorriso ou com a da sua vida que o não viveu? Porque isto da morte é muito relativo no que ao amor diz respeito, nada nos garante que esta coragem recém-chegada – e atrasada… – não a exija para fiel depositária. Seria injusto apagar o sorriso que o desafia a golpes de memória, há fantasmas que pedem meças a carne e osso – olhamos o outro e não é a nossa imagem que os seus olhos e desejo nos devolvem.

Quem sabe? Talvez se levante, pague e não regresse no sábado. E revisite o mundo que partilharam, ponte levadiça ajoelhada para lhe entregar as chaves da sua cidade estupidamente fortificada.

Tenho fé que tenha fé. E pergunte,

«Minha querida, estás aí? Totus Tuus

[Publicado originalmente na edição de 3 de abril de 2016]