A nova caça às bruxas

Já todos postámos nas redes sociais sem pensar, magoámos alguém, fomos magoados. E uma vez na rede, cada agravo multiplica-se por milhares e fica para sempre, destruindo vidas muito concretas, com filhos e sonhos. Quem pensa que um linchamento virtual não é um linchamento real, pense duas vezes.

Ao chegarem os comentários, milhares deles, um tsunami de indignação nas redes sociais, José Rodrigues dos Santos soube que teria dias difíceis. Apresentava o Telejornal de 7 de outubro, como de costume. Estava a introduzir a notícia seguinte do alinhamento, sobre as novas caras após as eleições, quando a gafe lhe saiu por não ter visto a peça: «O deputado mais velho do parlamento tem 70 anos e foi eleito – ou eleita – pelo PS.» O pivô confundiu Alexandre Quintanilha com Domicília Costa, eleita deputada pelo Bloco de Esquerda e um ano mais nova, referida na mesma reportagem. Um erro lamentável, ele próprio o admite, mas nunca escandaloso, não fosse o caso de Quintanilha ser homossexual assumido, casado com o escritor Richard Zimler. «É evidente a intenção de humilhá-lo em função da sua orientação sexual», condenava a turba virtual. «Achar que eu estava a fazer uma piada mostra como as pessoas enlouqueceram», defende-se o apresentador, convicto de que as fogueiras da Inquisição existem, só já não funcionam a lenha.

«O que fazemos na internet influencia todas as nossas dimensões fora dela, e vice-versa, pelo que um linchamento virtual é sempre um linchamento real», avisa o sociólogo Gustavo Cardoso, professor de Media e Sociedade no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. De virtual só mesmo a origem nas redes sociais; tudo o resto – o sofrimento, o perigo de sair à rua, a devastação emocional – é concreto e muito capaz de destruir vidas. «A distinção entre dois mundos não faz sentido na nossa sociedade hoje em dia: um e o outro são a mesma coisa, é impossível separá-los.» Se até há pouco tempo tínhamos a família, a escola e os mass media como instrumentos de socialização, agora temos a família, a escola, os mass media e as redes sociais. «É uma nova dimensão com a qual não sabemos lidar muito bem. Há toda uma aprendizagem.»

No mais esplêndido cenário de céu aberto, os motores do avião a ronronar, uma natureza imensa em baixo, Justine Sacco era uma mulher feliz em 2013. Tinha 30 anos e adorava o seu trabalho como chefe de relações públicas na InterActiveCorp, uma empresa de internet norte-americana. Estava a caminho da África do Sul para descansar e visitar familiares, ver um pouco mais de mundo. Até tivera tempo para “twittar” uma piada enquanto esperava pelo voo no aeroporto de Heathrow, em Londres: «De partida para África. Espero não apanhar sida. Estou a brincar. Sou branca!» Nunca lhe passou pela cabeça, naquelas horas a sonhar nas nuvens, que teria a vida desfeita ao aterrar, linchada por uma multidão online incontrolável que lhe chamava racista e idiota nas redes sociais, exigindo que fosse despedida. De 170 seguidores no Twitter, Justine passou a tópico mundial mais seguido ainda no ar. Desceu ao inferno.

«Para mim era um comentário tão disparatado que nunca pensei que alguém pudesse tomá-lo à letra. Não estava a tentar aumentar a consciência para o VIH/sida, nem chatear o mundo, nem estragar a minha vida. Viver na América coloca-nos numa espécie de bolha face àquilo que se passa nos países de terceiro mundo e eu estava a troçar dessa bolha», contou mais tarde ao jornalista britânico Jon Ronson, autor do livro So You’ve Been Publicly Shamed (Então Você Foi Humilhado Publicamente, lançado em março de 2015) sobre as consequências da vergonha pública. «Chorei o meu peso em lágrimas nas primeiras 24 horas, foi incrivelmente traumático. Não dormia. Acordava a meio da noite sem saber quem era.»

Segundo Gustavo Cardoso, já todos escrevemos algo na Net sem pensar se o devíamos ter feito, desencadeámos reações e, passado um tempo, nada é tão importante quanto fazia supor o tratamento excessivo na altura. Aconteceu com a blogger Filipa Xavier, do blogue Fashion-à-Porter, ao anunciar em plena crise que uma das suas metas pessoais para 2013 era comprar uma mala Chanel preta – fartou-se de apanhar nas redes sociais. Também Ana Garcia Martins, A Pipoca Mais Doce, foi cilindrada por arrasar o visual de uma portuguesa de 16 anos, com um tumor na clavícula, que assistiu à cerimónia dos Óscares em Los Angeles pela mão da Make-A-Wish, a associação que realiza sonhos de jovens com doenças graves. «E pronto, está escolhido o terror da noite. Esta pequena, de seu nome Sofia Alves, teve um surto de febre e, em delírio, decidiu apresentar-se assim na passadeira vermelha. Collant opaco, saia da Pimkie, uma camisola básica da H&M e o gorro do irmão mais velho que assalta carros à noite.» A Pipoca admitiu o erro, pediu desculpa, apagou o comentário, mas os insultos choviam à velocidade da luz.


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«Sendo ferramentas que funcionam para promover o contacto instantâneo, assumimos por defeito que temos de comunicar instantaneamente, sem grande reflexão, e fazemo-lo até termos más experiências.» Ainda assim, sublinha o sociólogo, perseguir outra pessoa no Facebook ou no Twitter é tão grave como perseguir alguém de cada vez que estaciona o carro e vai para casa. «Escrever num ecrã é o mesmo que escrever numa parede com graffiti: está lá. Perdura. Enquanto num estádio de futebol eu vou descarregar, gritar, chamar nomes a ninguém em particular, e pode até haver quem fique irritado mas acaba ali, a comunicação numa rede social tem alvos específicos, pessoas concretas e uma multiplicação exponencial. E aqui levanta-se a questão da (in)tolerância com o outro, que é um problema da sociedade como um todo.»

Quanto mais ansiedades e problemas temos, diz, maior a reatividade, com repercussões emocionais (e por vezes até físicas) no visado e na família. Um caso mais recente em Portugal é o da deputada pelo CDS-PP Inês Teotónio Pereira, autora da crónica De pé, ó vítimas de Costa: «Da mesma forma que o Sporting está nas mãos de Bruno de Carvalho, a minha família está nas mãos de António Costa. Não é nada bom estar nas mãos de quem perdeu o jogo e ameaça furar a bola porque não quer ir para a baliza», escreveu no jornal i a 10 de outubro. A revolta dos leitores explodiu, tão ofensiva quanto eles próprios se sentiram melindrados com a opinião: «Porque é que em vez de gozar com a cara de quem realmente tem estatuto de refugiado, por questões sérias, esta máquina de parir betos não vai acabar uma das suas licenciaturas?» Ou ainda: «Por mim, podes pegar nas mochilas e na canalha e bazares pró raio que te parta.»

Foi em janeiro de 1998 que a internet apedrejou, com requintes daquilo a que hoje chamamos ciberbullying, a sua primeira vítima famosa: Monica Lewinsky, ex-estagiária da Casa Branca, envolvida com o então presidente Bill Clinton num caso extraconjugal. Não havia redes sociais na altura, mas o público comentava online e propagava piadas cruéis por e-mail, um terror sem precedentes. «Da noite para o dia, passei de figura privada a pessoa humilhada publicamente no mundo inteiro. Perdi a reputação, à escala global, quase instantaneamente», recorda a ativista formada em psicologia, focada agora em ajudar outras vítimas através de palestras. Nunca sentiu ter havido proporção «entre a gravidade do crime e a alegre selvajaria do castigo» (palavras de Jon Ronson), mas tal não a impediu de pensar em suicídio. Como fez, de resto, o estudante norte-americano Tyler Clementi, 18 anos: saltou de uma ponte em setembro de 2010, depois de o colega de quarto divulgar na Net um vídeo em que o apanhou a ter relações com o namorado.

«Aquilo que nos leva a humilhar alguém é a necessidade de nos sentirmos superiores a ele devido a baixa autoestima ou desvios patológicos de personalidade», explica Teresa Andrade, psicóloga e docente do Instituto Superior de Saúde Egas Moniz. Se a pessoa visada pelos insultos já está fragilizada por outras circunstâncias, isolada socialmente, com fraca confiança, ou se necessita da opinião dos outros para se sentir bem, então uma perseguição e humilhação persistente pode fazê-la desistir de viver. «Ainda que eu não veja as consequências terríveis de maltratar psicologicamente alguém, sou o responsável por tudo o que decorrer desses maus-tratos: mesmo que um explosivo seja detonado à distância, fomos nós que o detonámos. Ser correto é uma escolha que todos podemos fazer. É uma questão básica de nos conseguirmos colocar na pele do outro.»

Também Rui Lourenço, especialista em redes sociais, acredita que o bom senso é um «excelente livro de estilo» neste palco de sangue quente e coração ao pé da boca. «Pode dizer-se tudo desde que se seja responsável pelo que se está a dizer: a minha liberdade de expressão esbarra no direito que o outro tem de não ser linchado em público. As consequências são sempre fruto das nossas atitudes», defende, convicto de que nada na web é anónimo, ao contrário do que se pensa, e cada aplicação dispõe dos seus próprios mecanismos para vigiar e punir. Mas às vezes não chega. «O pior nem são as piadas, são os rumores. Nascem propositadamente e, aproveitando uma falta de análise crítica das fontes por parte dos utilizadores, atingem proporções que põem em causa a reputação dos alvos.» O escritor Umberto, doutor honoris causa em comunicação e cultura dos meios sociais, é bem mais cáustico na sua crítica: «As redes sociais dão o direito à palavra a legiões de imbecis que antes só falavam nos bares, depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade.»

Uma coisa são as reações frontais, outra muito distinta é lançar a bomba e correr a esconder-se. Teresa Andrade até percebe que a distância física gerada pelo mundo virtual torne menos prováveis as respostas de vingança por parte da pessoa agredida, mas é a forma menos honesta de se dizer a alguém que não gostamos dele ou discordamos das suas ideias. «O facto de as redes sociais exporem em direto os comentários destrutivos torna o seu impacto maior, porque vão denegrir a pessoa junto de outras que também a conhecem e ficarão com dúvidas sobre o seu comportamento», diz. Podemos escolher bem os seguidores, evitar partilhar com todos conteúdos privados, eliminar contactos agressivos. Podemos impedir publicações que não sejam nossas ou permitidas por nós, denunciar agressões continuadas e desabafar com amigos ou profissionais. Só não podemos perder a humanidade. «Não nos custa tanto agredir usando a internet, mas no final, como em tudo na vida, ganha sempre mais a frontalidade de se falar cara a cara.»

VÍTIMAS VIRAIS

Alicia Ann Lynch
Sempre tinha ouvido dizer que no Halloween ninguém leva a mal, o que conta é a diversão e o melhor disfarce. No entanto, a foto que publicou no Twitter em jeito de brincadeira quase a destruiu em 2013, quando vestiu calções, camisola de corrida e dorsal, pintalgou o corpo com manchas vermelhas a simular sangue e anunciou aos seguidores que estava mascarada de vítima do atentado na Maratona de Boston, causador de três mortos e perto de 300 feridos. Poucas horas bastaram para perder o emprego e multiplicar os insultos de quem lhe chamava «ser humano absolutamente nojento», «sem coração» e «baixa». Descobriram ainda a morada completa de Lynch, a partir da carta de condução que tinha posto online, e seguiram-se ameaças de violação e morte a ela própria e aos pais.

Lindsey Stone
No Cemitério Nacional de Arlington, Virgínia, o mais tradicional cemitério militar dos EUA, Jamie Schuh fotografou a amiga Lindsey junto ao Túmulo do Soldado Desconhecido, em 2012, a simular dupla falta: um grito silencioso e o dedo médio apontado à câmara do telemóvel, quando o letreiro exige aos visitantes silêncio e respeito em homenagem aos corpos dos combatentes caídos. O post que depois pôs na sua página de Facebook não pretendia ofender ninguém: foi só mais uma de muitas situações em que fingiam desobedecer a sinais e registavam para a posteridade, como a foto que tiraram com cigarros nas mãos diante de uma tabuleta de “Não Fumar”. Mas Jamie não se apercebeu de que as definições estavam visíveis para todos, um grupo de veteranos enraivecidos fez com que a imagem se tornasse viral e Lindsey acabou despedida, isolada em casa durante um ano, com depressão e medo pela própria vida, à medida que aumentavam as perseguições e ameaças de morte e violação. Levou dois anos a recompor-se.

Tim Hunt
«Passam-se três coisas quando estás no laboratório: apaixonas-te por elas, elas apaixonam-se por ti e, se as criticas, choram», afirmou em junho Tim Hunt, Nobel da Fisiologia ou Medicina em 2001, que assim perdeu uma bela oportunidade de ficar calado. «A sério? Este prémio Nobel ainda acha que estamos no período vitoriano?», ripostou no Twitter Connie St Louis, jornalista e diretora do mestrado em Jornalismo de Ciência na City University, Londres. Como quem diz: mas ele pensa realmente que cientistas homens e mulheres deviam trabalhar separados? Foi um instante enquanto as redes sociais se incendiaram e as mulheres retaliaram com a hashtag #distractinglysexy (#distraidamentesensuais). Hunt ainda tentou explicar-se, insistindo ser muito importante poder criticar as ideias das pessoas (leia-se das mulheres) sem que o tomem como algo pessoal. «Se se põem a chorar, fazem com que se comece a esconder a verdade e isso mina a ciência.» Acabou a demitir-se da University College London.

Darth Vader
Não é, obviamente, o nome real do homem, que preferiu manter o anonimato à luz de tudo por que tem passado desde maio. Mas o caso começou quando este pai se passeava num centro comercial de Melbourne, Austrália, viu um cartaz gigante de Darth Vader e decidiu tirar uma selfie com o vilão da saga Guerra das Estrelas para mostrar aos filhos. Ao vê-lo de smartphone apontado, uma mãe que circulava diante dele com o filho e um coleguinha achou que estaria de olho nas suas crianças. Tratou então de fotografá-lo ela mesma, postou a imagem no Facebook e pediu a ajuda da polícia para lidar com aquela «pessoa esquisita», que rendeu mais de 20 mil partilhas e o rótulo de pedófilo a um inocente que não desconfiou até começar a ser perseguido nas redes sociais. «Sou pai de três crianças e um ser humano normal», contaria mais tarde ao Daily Mail Australia, desesperado. «Nunca tinha sequer tirado uma selfie antes.» A vida daquela família só normalizou quando a imprensa deu conta do engano, mas aí foi a acusadora quem passou a acusada, recebendo insultos e ameaças de morte. «Os meus filhos estão agora a sofrer por um erro estúpido meu. Estão a sofrer muito e eu odeio imaginar o que aquele homem passou», lamentou. «Acho que a maior lição é não postar algo que possa magoar alguém.»

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Este artigo foi originalmente publicado na Notícias Magazine a 8 de novembro de 2015.