A guerra ainda no meio de nós

Notícias Magazine

Disse apenas que naquele Domingo de Ramos tinha tido uma patrulha «muito complicada», e assim o registou a mulher que o ouvia. O que estava dentro daquela frase era aquilo que não pode ser dito, ou que só pode ser dito em circunstâncias muito especiais. Ela chama-se Maria José Lobo Antunes e escreveu Regressos Quase Perfeitos – Memórias da Guerra em Angola, o livro que me tem acompanhado nestes dias, e que ao mesmo tempo quero e não quero terminar. Sim, já o li todo, mas volto atrás e releio pormenores que quero clarificar.

Não é uma curiosidade mórbida, mas sem dúvida que também estou a querer perceber o país, os anos que vivi, muitas pessoas que amei ou conheci de relance, e não fujo a confessar que pelo meio estou também a pensar no meu pai dos tempos da guerra, e no que a guerra mexeu na minha infância e na minha adolescência e hoje ainda. Não o dia-a-dia de tiros e minas e unimogs, até porque o livro não é isso. Mas também o antes, o depois, e nesse quotidiano de perigo também as conversas, as cumplicidades, as paisagens, as pessoas, o tempo suspenso de que Maria José fala. E para já começo a tratá-la por Zé, ou Zezinha, porque a conheço há tantos anos e cada página é a revelação de uma mulher meticulosa e profissional que não transparece, nem tem de transparecer, nas conversas de amigas.

Estão no livro, que sem o parecer é uma tese de doutoramento e foi editado pela Tinta da China, as vidas de homens que passaram por experiências limite e que mais de dois anos depois voltaram, num regresso quase perfeito que cada um construiu, ou vai construindo. E tudo contado por eles, cerzido por ela e por uma investigação rigorosa e documentada, e em pano de fundo a mãe e o pai da Zé, precisamente no tempo em que ela nasceu.

O trabalho é minucioso como uma filigrana do Minho. Com um extremo respeito por cada um dos homens da Companhia de Artilharia 3313, ela liga os fios de memórias pessoais e os encontros em que se desvendam, e vai ao fundo da questão a que tantos tentaram responder: o que é a memória?

O que aconteceu naquele Domingo de Ramos não vou contar, porque está no livro e é ali que deve estar, entre amigos, não numa crónica de uma pessoa de fora. Digo só que foi um dia no fio da navalha, de um lado a vida, do outro a morte, e hoje eles estão cá para contar.

Podia declarar assim, em jeito profissional: este é um documento imprescindível para entender a guerra colonial. E tenho a certeza de que é isso mesmo, um livro fundamental para quem queira estudar o Portugal da segunda metade do século xx. Um ato de persistência, e sei do que falo porque vi como muitas vezes foi doloroso e como demorou até a Zé chegar a este puzzle que cada um há de completar com a sua própria memória. Ao longo de 400 páginas, ouvimos as vozes de todos, nos depoimentos a sós, nas conversas dos almoços anuais da companhia, e cruzamo-las com Os Cus de Judas e o D’ Este Viver aqui neste Papel Descrito – Cartas da Guerra, de António Lobo Antunes, o pai. E os documentos oficiais, com as omissões e os pormenores que parecem postiços. Um ano de guerra bruta, mais outro de estranha pasmaceira mas ainda em guerra, e os meses finais à espera do dia de regressar, cigarros e cigarros e desespero. Dois anos e meio que mudaram as vidas destes rapazes, novíssimos, 20 anos, nascidos neste retângulo tão pequeno e depois uma arma na mão e um mundo fechado num quartel no meio do longe. Um ato de persistência, quero dizer, um ato de amor.

[Publicado originalmente na edição de 28 de fevereiro de 2016]