A família que vai dar a volta ao mundo de barco

Durante dois anos, uma família açoriana vai navegar à volta do globo a bordo de um catamarã. Com os filhos Leonardo e Benita, de 3 e 6 anos, o sonho de Joana e Armindo vai finalmente ganhar forma. Regressam dentro de 730 dias, mas, pelo caminho, vão levar uma mensagem ambiental pelos oceanos. O Benileo solta amarras de São Miguel na próxima semana.

Aos olhos de Benita, o mundo é do tamanho dos seus braços abertos. Pelo menos para já: em breve, a pequena açoriana de 6 anos, juntamente com o irmão, Leonardo, de 3, e os pais, Joana e Armindo, vai embarcar numa aventura que parece saída de um livro de Júlio Verne. E aí o planeta é capaz de ficar bem maior.

Dentro de poucos dias, a família Furtado vai soltar amarras do porto velho de Ponta Delgada, em São Miguel, nos Açores. «Vamos dar a volta ao mundo!», grita o loiro de olhos azuis. Durante dois anos, o Benileo será a sua casa, escola, recreio e transporte.

«A ideia surgiu durante os Jogos Olímpicos de Londres [2012]», diz Joana Amen. «Sempre quisemos ir ao Rio de Janeiro [Jogos de 2016]. Começamos a sonhar ir de barco e, já que vamos viajar, porque não ir um pouco mais longe?» Do sonho, Armindo começou a delinear a aventura.

Joana pediu uma licença sem vencimento na instituição particular de solidariedade social onde trabalha como psicóloga, compraram um catamarã por troca com o monocasco que tinham antes.

Até o nascimento de Leonardo, em janeiro de 2013, foi planeado. «Depois de pensarmos nesta viagem, decidimos que queríamos fazê-la com mais um filho. Foi um dos objetivos deste sonho», diz Joana enquanto afaga a cabeleira loiro do filho, sossegado no intervalo das brincadeiras com a irmã.

«Mãe, quero ir tomar banho», interrompe Benita. A entrevista, feita a bordo do catamarã, teve de adaptar-se ao ritmo das crianças. Uma pequena janela do que será a vida da família durante os próximos dois anos, o que, para Joana, é o maior desafio desta aventura. «Não é o mar que me preocupa. Com tanta tecnologia, só nos metemos no mar quando está bom. Vivermos os quatro, 24 horas, todos os dias. A isso é que não estamos acostumados. Vivemos com os filhos e com o marido duas horas por dia habitualmente. Isto será um desafio diferente. Mas tenho a certeza de que vamos aprender a gerir o tempo de outra maneira e estarmos juntos de outra forma. Vamos sair daqui mais próximos, unidos, coesos.»

Armindo garante que tem a receita para esse desafio. «Manter a harmonia, mantermo- nos felizes, gerindo interesses e objetivos por vezes diferentes.» Na verdade, essa também é uma das razões pelas quais se lançaram nesta empreitada: insatisfeitos com o facto de passarem pouco tempo com os filhos, decidiram chamar a si essa responsabilidade. «Queremos estar mais tempo com eles. Questionamos a elevada carga horária da escola e termos os nossos filhos a ser formados por outras pessoas. Os pais querem o melhor para os filhos, por isso acho que devíamos ser nós a educá-los.»

Joana vai ser a professora de Benita durante os dois anos que aí vêm, «seguindo o programa dado pelo Ministério da Educação, com o apoio do Colégio do Castanheiro onde ela estuda. Mas tenho a oportunidade de estar o dia todo com a minha filha e ter um tempo, pelo menos durante dois anos, em que vou viver a infância deles intensamente. E isso não tem preço.»

Natural do Porto, Joana, 35 anos, apaixonou-se pelos Açores numas férias há 11 anos. Um ano depois já estava à procura de trabalho em São Miguel. Psicóloga comunitária, conheceu o marido em 2007. Um ano depois nasceu Benita. «Sempre disse, na brincadeira, que quando viesse para os Açores teria de aprender a andar de barco, senão andaria sempre à volta na ilha» ri-se, enquanto veste o colete de salvamento ao filho, que quer as barbatanas «mas só para ir brincar para as escadas do barco». E acrescenta: «Eu não vou para o mar sozinho!»

Ainda sem saber nadar, Leonardo é o mais parecido com a mãe no que toca aos assuntos do mar. Já a irmã faz o stand-up paddle parecer acessível ao mais comum dos mortais, remando na marina, à volta do catamarã, esperançosa de que um dos muitos barcos atracados se faça ao alto-mar «para criar umas ondinhas».

O gosto pelo mar foi herdado do pai. Empresário, já teve lojas de bicicletas, arranjou e vendeu barcos, foi pescador, construiu canoas, deu aulas de windsurf, fez regatas. Agora, aos 52 anos, continua a ser homem de mil trabalhos, um MacGyver, nas palavras da mulher, mas skipper de coração. Micaelense, sempre esteve ligado ao mar – «já fui levar e buscar barcos a todas as zonas do globo» – e isso ajuda a explicar a aceitação que a família tem por esta aventura, que consideram «uma excelente oportunidade para os nossos filhos viverem de outra forma e aprenderem a velejar desde pequeninos». Do lado da família de Joana há mais resistência: «Estão um pouco preocupados. Eu percebo a posição deles: são de uma geração que privilegia a estabilidade e isto é completamente o oposto. Mas aceitam.»

É pelos filhos que Joana e Armindo dizem arriscar viver no mar durante dois anos, pela oportunidade de viver a infância em conjunto e de conhecer outras vivências, outras culturas.

Mas também por eles próprios. «Adoro o meu trabalho mas preciso de ver-me noutros papéis», diz Joana. Precisa de um «ano sabático» depois de uma década na «desgastante área social».

A vida no mar vai obrigar a muitas mudanças. Já fez que os filhos escolhessem os brinquedos que mais gostavam e dessem os restantes a outras crianças. «Queremos que sejam eles a construir os seus próprios brinquedos, para darem mais valor.» Outra medida essencial foi arrendarem a casa onde viviam – e sobre a qual não tinham obrigações financeiras. «Acabamos por acumular tanta coisa e é preciso gerir tanto. Saber que agora só temos isto é uma forma mais leve de viver.» O valor da renda será uma importante fonte de rendimento para a viagem, que será suportada por pequenos trabalhos que pretendem fazer nos locais que visitarem, como reparações em veleiros, «uma necessidade em alguns dos pontos mais remotos que vamos visitar», diz Armindo.

Para tentarem controlar ainda mais os custos ao longo dos dois anos da viagem, o Benileo raramente ficará atracado nas marinas. «Há locais onde só um dia custa para cima de cem euros» diz Armindo. Vão deixar o catamarã ao largo e acedendo a terra através de uma embarcação insuflável. Sonhar tem o seu custo e uma aventura destas vai exigir muito das finanças da família. Mesmo com um planeamento apertado – estimam que o mínimo necessário chegue aos noventa mil euros, entre seguros, refeições, comunicações, combustível e transportes, entre outros –, há sempre inesperados: uma avaria do motor já atrasou a saída de Ponta Delgada e o computador portátil de Joana também decidiu «tirar folga».

«Mas nem esses contratempos nos tiram o sonho», diz Joana. A vizinha ilha de Santa Maria é o primeiro ponto de uma aventura que sabem que vai mudar-lhes a vida. Daí seguem para a Madeira, as Canárias e Cabo Verde, antes de cruzarem o Atlântico a caminho das Caraíbas. A rota está traçada, mas sempre aberta a alterações e mudanças. A aventura será relatada na página do Facebook «Volta ao mundo de uma família açoriana»

OS AÇORES E A MENSAGEM ECOLÓGICA

Tudo terá de ser encurtado ao mínimo – até os cabelos de todos – para ser o mais prático possível. Pouca roupa, pouca comida, pouco lixo, sem químicos a bordo para não poluir o mar, limpar o chão com vinagre e recuperar o sabão azul e branco. O Benileo já tem um painel solar e duas hélices para aproveitar energia eólica e receberá um dessalinazador no Panamá.

A mensagem ecológica é um dos objetivos da viagem, assim como a divulgação do arquipélago, através da «Caixa dos Açores», onde levarão areia preta, pedrapomes, fotografias e postais que espelham a história, a cultura e a arte das ilhas. «Queremos promover a região que amamos e queremos que isto sirva de porta de entrada para falarmos com as associações e as organizações que vamos contactar nas escalas», diz Joana Amen.

A família procurou apoio junto do governo regional dos Açores para a promoção da região, «à semelhança do que já foi feito em outras alturas, em projetos semelhantes», diz Armindo, mas a proposta foi recusada «por haver projetos cujo impacto é mais relevante em termos de animação e promoção da região», lê-se na resposta que receberam. Ao longo dos próximos 730 dias, a família será parceira da associação Sailors for the Sea Portugal – promove ações de educação ambiental em escolas e praias –, da Global Contact – associação da ONU que promove os 17 objetivos do desenvolvimento sustentável junto de organizações não governamentais – e da GRACE, associação sem fins lucrativos, dedicada à promoção da responsabilidade social corporativa.


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