A estrada que é nós

Notícias Magazine

Dois deputados, Carlos Silva, do PSD, e Abel Batista, do CDS, querem glorificar a nossa EN2. A estrada que nos atravessa como a coluna vertebral, de cima a baixo. Aliás, mais, porque sendo também pelo meio é mesmo de cima a baixo, Portugal todinho, de Chaves a Faro. Clap, clap, clap, isto sou eu, de pé, a bater palmas. Adoro ver os meus eleitos com boas ideias. Um deles diz que a nossa EN2 poderia ser a Route 66 portuguesa. De toda a bela ideia, só essa acho mal: a EN2, para se puxar por ela – e há razões para isso –, não precisa do colo de outras. Já fiz bocados da Route 66 e só fiz bocados porque ela na América é mais uma. Nem parte da costa atlântica, só desce, em diagonal, de Chicago, nos Grandes Lagos, até Los Angeles, no Pacífico.

Quando me perguntam «já fizeste a Route 66?», digo com soberba: fiz melhor e mais. Por duas vezes fiz o retângulo que é a América: desci de Nova Iorque, quando não pude mais, virei à direita, era a ponta da Florida, atravessei os estados do extremo Sul, bati no Pacífico, virei à direita, bati na fronteira canadiana, virei à direita, no Nordeste bati no Atlântico e desci de regresso a Nova Iorque. Pode parecer um percurso de carrinho de choque, mas meteu lá dentro, porque me permitia ziguezagues, plantações de algodão da Georgia, os pântanos do Mississípi, os montes vermelhos de Sedona, as pradarias de Montana, a skyline de Chicago…

Daí o meu snobismo: Route 66, sim, é fantástico vê-la escrita no asfalto do Arizona desértico, mas não acredito numa estrada que passa pelo aborrecido Missouri e não entra no Tennessee para ouvir country music em Nashville. E, ainda mais snob, proclamo: a EN2 merece melhor comparação, que é ser comparada consigo própria. Quando me perguntam «já fizeste a EN2?», corto a conversa como se deve fazer aos insultos: claro que sim, ela é única! Porque ela, nos seus 740 quilómetros, de cima a baixo e no meio, cola-se ao perfil do meu país, que é alto e magro.

Por isso ela deve ser vendida e incensada – é essa a intenção dos dois benditos deputados – como a estrada de Portugal. Logo no começo (o movimento é o da História de Portugal, que se fez descendo), à direita, as ruínas do hotel Universal de Pedras Salgadas, onde, nos anos 1930, o cozinheiro João Ribeiro apurou o demolhar do bacalhau, com que conquistou para nós o Calouste Gulbenkian, mais tarde. Antes de entrar em Vila Real, à esquerda, Vilarinho de Samardã, à beira do Corgo, onde Camilo passou os únicos anos felizes da sua mocidade, aprendeu o latim de que se esqueceu e matou um lobo. E tudo isso antes de a nossa estrada atravessar o Douro.

Adiante dele, a Sé de Lamego, com a sua fachada que deveria ter uma bolinha vermelha mas felizmente não tem. Se vai com crianças, mande-as passear para as escadarias da Senhora de Remédios, e delicie-se, caro leitor ou leitora, com a fachada da Sé com figurinhas malandras. Vá descendo por Portugal, pela sua estrada real. Real porque autêntica, contando-nos – como à chanfana que se come em Pampilhosa da Serra. A estrada que é nós passa naturalmente ao lado do centro geodésico de Portugal, o nosso umbigo, logo antes de entrar em Vila de Rei…

E assim por diante, até Faro, o país atravessado pelo marco que é a nossa EN2. Os deputados querem que ela seja o que é, mas valorizada e enaltecida. Clap, clap, clap, sou eu outra vez. Não lhe chamem outra coisa, mas copiem o que de bom outros fizeram. Existe, por exemplo, uma bela canção, cantada por Nat King Cole, de nome Route 66. O Camané podia atirar-se a uma EN2, com letra de José Mário Branco.

[Publicado originalmente na edição de 16 de outubro de 2016]