Zita Martins

Não é ficção científica, mas tem os ingredientes de uma aventura galáctica. A primeira astrobióloga portuguesa passa os dias a tentar encontrar pistas para resolver dois enigmas: como surgiu a vida na Terra e se existe vida fora dela. As respostas tanto podem estar em meteoritos, em Marte ou nas luas geladas de Júpiter e Saturno. Cientista no Imperial College, em Londres, onde gere uma bolsa de um milhão e meio de euros, colaboradora da Agência Espacial Europeia e da NASA, Zita Martins quer agora continuar a viagem interminável em Portugal.

Quarenta anos. Um feito científico. Zita Martins conseguia finalmente colocar um ponto final na dúvida que se alastrava há mais de quatro décadas: as bases nitrogenadas dos meteoritos seriam realmente extraterrestres? O calendário avançava entre 2005 e 2006, quando a astrobióloga portuguesa, licenciada em Química pelo Instituto Superior Técnico, aceitou ser cientista convidada na agência espacial norte-americana, enquanto concluía o doutoramento em Leiden, na Holanda. Seriam as suas investigações na NASA a permitir desvendar o mistério. «Os cientistas detetavam bases nitrogenadas – moléculas do nosso código genético – em meteoritos. Só que a comunidade científica não sabia se essas moléculas eram extraterrestres ou simples contaminação terrestre. Eu fiz análises que mostram que são extraterrestres e resolvi de uma vez por todas essa discussão.»

Se o leitor ficou com a cabeça no espaço durante o primeiro parágrafo, fique a saber que a viagem continuará sem os pés muitos assentes na Terra. Hoje, tal como em 2005, o raio de ação de Zita Martins estende-se até aos limites da resposta a dois dos mais cativantes enigmas do universo: «como é que a vida surgiu no nosso planeta», e «se existe vida extraterrestre, onde é que se manifesta e se teve uma origem semelhante à nossa». A primeira astrobióloga portuguesa tem de recuar ao passado mais remoto para explicar de onde vimos. «Sabemos que a vida terrestre surgiu há cerca de 3,5 a quatro mil milhões de anos» através de fósseis, que não só funcionam como «amostras reais» como ajudam a fazer os cálculos. O sistema solar, esse, formou-se bem antes, há 4,6 mil milhões de anos. «Temos amostras extraterrestres na Terra, ou seja, meteoritos que vieram, na maioria dos casos, da cintura de asteroides entre Marte e Júpiter. Quando analisamos os meteoritos, por vários processos, conseguimos datá-los. Alguns não foram significativamente transformados desde a formação do sistema solar.» Pelo meio, entre 4,6 e 3,8 mil milhões de anos, «a Terra sofreu um grande bombardeamento de cometas e asteróides».

A origem da vida apresenta-se aos cientistas como um grande puzzle incompleto, sucessivamente construído e relacionado peça a peça. Umas há que se conseguem encaixar por prova científica, outras são equacionadas através de teorias. «Uma teoria defende que houve síntese na atmosfera da Terra primitiva – ao tempo da formação do nosso sistema solar era muito diferente da Terra atual. Os cientistas acreditam que moléculas orgânicas possam ter sido sintetizadas na atmosfera ou no fundo dos oceanos em fontes hidrotermais. No meu caso, gosto de outra teoria, que diz que as moléculas orgânicas vieram todas de fora da Terra.» Os meteoritos voltam a ser chamados ao texto, ou não fossem eles o campo de investigação por excelência de Zita Martins. «Os meteoritos são as amostras mais antigas do sistema solar, têm cerca de 4,6 mil milhões de anos. São máquinas do tempo. Não é todos os dias que podemos tocar em rochas extraterrestres.» A preferência teórica, admite, deve-se ao «fascínio» de «contactar com amostras reais que apelam um pouco à ficção científica».

Ficção científica, sim, mas na dose certa. A investigadora de 36 anos nunca foi leitora compulsiva do género literário. E se hoje é uma conceituada cientista internacional no campo da astrobiologia, uma dose generosa de culpa deve ser atribuída a Cosmos, a série de televisão escrita e apresentada por Carl Sagan nos anos 1980. «No liceu, a professora de Biologia passava os vídeos da série, e eu lembro-me de ficar absolutamente fascinada pelo facto de se misturar Biologia, Física, Química, o espaço e tudo o resto, mas também por Carl Sagan ser um grande comunicador de ciência. Desafiava a ideia que tínhamos dos cientistas.» Zita Martins parece ter seguido o modelo à risca. Integra atualmente uma lista restrita de nomes a que os meios de comunicação britânicos recorrem – seja a BBC, a Sky News ou o Channel 4 – sempre que é preciso falar do espaço. Preparação tem de sobra, seja em televisão ou em rádio, resultado da sua participação no programa BBC’s Expert Women (2013). Em meados de 2015 surgiu a condecoração oficial da Presidência da República, com a Ordem de Sant’lago da Espada, pelo mérito de contribuir para a investigação e a divulgação científicas.

Ao laboratório da cientista residente no Imperial College, em Londres, continuam a chegar amostras de meteoritos e cometas de várias proveniências. Da missão Rosetta, por exemplo, organizada pela Agência Espacial Europeia (ESA), que em 2014 «recolheu amostras do cometa 67P e enviou os dados para Terra». Antes da missão Stardust, preparada pela NASA, que «trouxera amostras do cometa Vild-2». Missões espaciais, telescópios, investigação. Tudo serve, desde que adaptado à circunstância. «Cometas e meteoritos transportaram moléculas orgânicas extraterrestres fundamentais para a vida.» Vida, vida. Terreno escorregadio. «A definição de vida é muito discutida. Neste caso, entenda-se “vida” como nós a conhecemos, baseada em carbono, e que é possível replicar. Realmente não sabemos como é que saltamos de ter simples moléculas orgânicas para a vida. É a grande, grande questão.» Zita Martins, por ela, manterá sempre a quota-parte de responsabilidade na procura de respostas, o mesmo é dizer «simulações em laboratório e análise de moléculas orgânicas presentes em asteróides, cometas ou meteoritos ». Passo a passo, com a cadência regulada pelo relógio do universo. «Não podemos dizer que daqui a dez anos vamos descobrir como a vida surgiu na Terra. Talvez a perspetiva mais realista seja descobrirmos primeiro se existe vida extraterrestre. E uma coisa está ligada à outra. Podemos sempre comparar e tentar perceber se são iguais ou diferentes.»

Falar de potencial «vida extraterrestre» é falar do Planeta Vermelho. «Como ainda não houve uma missão espacial a Marte para recolha de amostras, precisamos de treinar os instrumentos e otimizar as condições dessa futura missão.» Há dois anos, a astrobióloga foi «treinar» para o deserto da Austrália, um dos locais terrestres mais semelhantes «do ponto de vista químico, físico e geológico» a Marte, que vai-não-vai se atravessa no caminho de Zita Martins. Em 2007, quase a terminar o doutoramento na Holanda, recebeu diversas propostas. Acabou por optar pelo pós-doutoramento no Imperial College, colaborando com a missão ExoMars (ESA) até 2009. «O objetivo continua a ser detetar sinais de vida extraterrestre em Marte. Será enviado um rover (veículo não tripulado) que chegará ao solo daquele planeta em 2018. É uma missão importantíssima. No entanto, acho que o foco está agora muito voltado – e eu sempre fui grande fã desta perspetiva – para as luas geladas de Júpiter e de Saturno. Sabemos que existe um oceano líquido por baixo dessa camada de gelo e, potencialmente, poderá existir ali vida. Mas vai demorar décadas até descobrirmos.»

Em 2009, Zita Martins garantiu a bolsa de investigação (fellowship) da Royal Society (Academia de Ciências Britânica) e com ela surgiu uma nova etapa para a menina que poderia ter sido uma estrela de ballet clássico – quando tinha 9 anos, os professores disseram à mãe que devia seguir a carreira de bailarina – e que aos 15 anos decidiu aprender russo pela influência da Rússia na corrida espacial. «Qualquer astronauta que vá para a Estação Espacial Internacional tem de saber russo.» Nunca ambicionou ser astronauta, mas agrada-lhe a ideia de o seu trabalho «seguir um dia numa missão». A Agência Espacial Europeia (ESA) tem por tradição abrir vários concursos para missões espaciais. Zita Martins candidatou-se recentemente com o projeto MarcoPolo-2D. Objetivo? Recolher amostras de um «asteroide muito primitivo». «Chegámos à fase final da seleção, passando por muitas etapas, mas a proposta foi recusada. Neste momento posso dizer que os estudos deste projeto estão a ser utilizados para potenciais futuras missões da própria ESA.» Ainda não há decisões finais, é certo, mas a astrobióloga portuguesa, membro de uma das equipas de aconselhamento da ESA, levanta um pouco o véu sobre o alcance das missões: «Ir a Fobos, uma das luas de Marte, e voltar à Lua, aos polos da Lua, porque são feitos de gelo e funcionam como uma arca frigorífica preservada no tempo.» De resto, esta disciplina científica também se rege por alguns segredos, sobretudo quando a conversa puxa pelos detalhes da investigação mais atual. «Posso dizer que continuo a analisar meteoritos. Nesta área não divulgamos muito. Há uma grande competição.»

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«QUERO REGRESSAR A PORTUGAL»

HÁ 15 ANOS A INVESTIGAR NO ESTRANGEIRO – HOLANDA, ESTADOS UNIDOS E AGORA INGLATERRA –, ZITA MARTINS NÃO ESCONDE QUE UM DOS SEUS OBJETIVOS É CRIAR O PRIMEIRO GRUPO DE ASTROBIOLOGIA EM PORTUGAL. A PARTIR DE 2017, TUDO É POSSÍVEL.

Em que fase está a sua carreira em Londres?
_Em 2009, ganhei uma fellowship da Royal Society, com a duração de oito anos, o que faz que eu seja tratada como membro permanente. Além de ser muitíssimo prestigiante e competitivo, permite-me ser investigadora independente. Recebi um milhão de libras [cerca de 1,4 milhões de euros].

Um milhão de libras só para a sua investigação?
_Sim, para pagar a minha investigação, os reagentes no laboratório, as viagens, os custos indiretos do Imperial College, os ordenados, etc.

Faltam, portanto, dois anos para terminar a bolsa de investigação. Regressar a Portugal faz parte dos seus planos?
_Há alguns anos que o meu objetivo é regressar e ter o meu grupo de astrobiologia. Saí há quase 15 anos porque não havia – e continua a não haver – astrobiologia em Portugal.

Ainda hoje?
_Sim. Não há. Há investigadores que fazem pontualmente geologia ou astronomia, mas não há oficialmente nenhum grupo de astrobiologia. Fui a primeira portuguesa (ou português) a ter um doutoramento e a trabalhar nesta área científica. O meu objetivo sempre foi, e continua a ser, colocar Portugal no mapa da astrobiologia – internacionalmente, toda a gente sabe que sou portuguesa.

Com os meios financeiros e de investigação que tem hoje à sua disposição em Londres, como é que, na prática, se vê a continuar a sua carreira em Portugal, onde a redução do investimento em ciência foi muito criticada pelo meio universitário e científico?
_Primeiro que tudo, eu sou licenciada em Química, portanto a minha investigação pode ser feita em qualquer laboratório de Química, seja numa universidade ou num instituto. Não é nada de exótico. Exóticas são apenas as amostras em que trabalho e as missões de que faço parte. Para continuar a carreira em Portugal, basta as universidades ou os institutos decidirem abrir uma posição. Isso é normalíssimo. Depois é candidatar-me a financiamento e a fundos europeus. É o processo normal de quem faz ciência, em Portugal ou em qualquer outra parte do mundo. Em segundo lugar, sabemos bem como é que as coisas ficaram com o governo de direita. Neste momento tenho grande esperança de que regresse o investimento. Voltámos a ter um Ministério da Ciência, o que é muito positivo, e o novo ministro [Manuel Heitor] foi secretário de Estado no tempo de Mariano Gago, que impulsionou muitíssimo a ciência em Portugal. Espero ansiosamente para ver.