Violetta: a última das boazinhas?

Violetta, o maior fenómeno infantojuvenil da atualidade, chega a Lisboa para seis concertos. Aos 17 anos, Martina Stoessel aposta tudo na imagem inocente e bondosa. Mas que futuro a espera num mundo de vedetas juvenis disfuncionais saídas do universo Disney e cujo caminho para a fama, após descolarem das personagens angelicais, foi feito de drogas, álcool e escândalos? A atriz argentina empenha-se em provar que não precisa de nada disso para ter sucesso.

Drogas. Álcool. Bulimia. Au­tomutilação. Internamen­to psiquiátrico compul­sivo. Pancadaria. Lambi­delas eróticas a materiais de construção civil. Na­da disto é um filme de terror, ou um bi­zarro soft porn. São os comportamen­tos típicos de muitas estrelas das produ­ções Walt Disney. Será Martina Stoessel, 17 anos (completará os 18 em março), a atriz argentina que interpreta Violetta, modelo dos sonhos das pré-adolescentes do mundo inteiro, protagonista da pro­dução homónima da Disney, que esta se­mana chega a Portugal para seis concer­tos, a última – a única – das boazinhas?

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Martina, cara de anjo, corpo enxu­to, sorriso querido, voz de menina, sex-symbol à espera de explodir entre tan­ta inocência, começou a ter aulas de can­to e representação aos 4 anos. Tal qual Shirley Temple, a californiana mãe de todas as estrelas infantojuvenis, que do­minou as bilheteiras de cinema dos EUA durante quatro temporadas seguidas, entre 1935 e 1938, à frente das megaes­trelas Mary Pickford, Clark Gable, Ka­therine Hepburn, Gary Cooper. Marti­na, a cabeça-de-cartaz de Violetta Live, o espetáculo ao vivo que encherá por seis vezes (os bilhetes já estão praticamen­te esgotados) o Meo Arena este fim de semana, é reconhecida nas ruas de 53 países, e o show que consagra a teleno­vela passará pelos estádios e anfiteatros re­pletos de 38 cidades nos cinco continentes.

Martina ainda é uma teenager, mas anda a preparar-se para isto desde que começou a caminhar. Aos 5 anos, praticava ballet. Aos 6, aprendia hip-hop. Aos 10, estreava-se na te­levisão como atriz, na série Patito Feo (a vi­da dela também é uma fábula, de patinho feio a princesa encantada). Mas quem são os ídolos de Martina, nativa de Buenos Ai­res, filha de um produtor de televisão, Ale­jandro Stoessel, criança programada para entreter as outras crianças? Ela costuma ci­tar três: Miley Cirus, Selena Gomez e De­mi Lovato. Todas têm hoje 22 anos. Todas foram vedetas de produtos televisivos da Walt Disney. Todas venderam milhões de discos nos seus contratos com a Hollywood Records, o braço musical da… Disney.

Esqueçamos por um momento que tam­bém já fomos pré-adolescentes, possíveis fãs da Hanna Montana de Cyrus, de Os Fei­ticeiros de Waverly Place da Selena, de Camp Rock, o musical delicodoce que Lovato pro­tagonizava ao lado dos Jonas Brothers. Se olharmos para Miley Cyrus, Selena Gomez e Demi Lovato com olhos crescidos, perce­beremos – são as próprias a tê-lo confessado inúmeras vezes – que os ídolos das crianças do planeta entre os 6 e os 14 anos se tornaram adultas disfuncionais. Um caos. Como o li­ceu e a adolescência a todos ensinou, cres­cer é uma tarefa complicada.

Antes de nascer, Cyrus já estava desti­nada a grandes cometimentos – a militân­cia obsessiva dos pais das estrelas infan­tis daria para ocupar várias prateleiras de uma biblioteca especializada em Freud. O pai, o cantor country semiobscuro Billy Ray Cyrus, decidira chamar à filha Destiny Hope Cyrus. «Miley» (de «smiley», «sorri­so») Cyrus lá cumpriu o seu destino: estreia como atriz aos 11 anos – tal como Martina «Violetta» Stoessel; quádrupla platina no álbum de estreia; quatro milhões de discos vendidos aos 14; primeiro filme como pro­tagonista aos 16; recorde do Guinness co­mo a adolescente com mais entradas (29) no top 100 da Billboard; 17.ª personalidade do mundo mais influente para a revista Forbes. E o que fez Cyrus com a maioridade? Por agora, além de colecionar camiões TIR atulhados de dinheiro, cortou o cabelo curto, tingiu-o de loiro, enfiou um fato de látex e um soutien de silicone, simula masturbar-se nos espetáculos da mais recente digressão, fuma uns charros nos MTV Video Music Awards («adoro ficar pedrada, a marijuana é uma droga feliz, a melhor droga da Ter­ra», repete nas entrevistas) enquanto esfre­ga o rabiosque no misógino Robin Thicke, e lança videoclips em que exercita a língua em martelos pneumáticos e bolas de demoli­ção tal como veio ao mundo. A tática eman­cipada parece resultar: o teledisco de Wre­cking Ball atingiu os 19 milhões de visuali­zações no YouTube no dia de lançamento, e a sua fortuna pessoal ultrapassou os 25 milhões de euros em 2014. Entretanto, os críticos de música e os analista de media abrem a boca de incredulidade, confusos quanto ao método e à mensagem, embara­çados com tão desajeitado salto quântico de libertação – três anos antes, Hannah Mon­tana cantava, de vestido até ao pescoço, so­bre a paz e harmonia entre os meninos e as meninas.

Selena Marie Gomez, uma texana que mantém aos 22 anos o rosto e a estatura de criança, teve um sucesso mais mitigado. Mas isso não a impediu de se estrear nos produtos do Disney Channel um ano mais cedo do que Cyrus, aos 10 anos, em Barney & Friends. Após uma década de discos pue­ris e séries inofensivas, libertou-se musical­mente, mantendo porém um equilíbrio em escolhas e imagem que a poderá prejudicar em termos comerciais – é o problema da in­dústria de entretenimento, alimenta-se da perpétua mudança e novidade. No entan­to, as dores de transição rumo à vida adul­ta foram garantidas pelo penoso e espar­so relacionamento com outra megavedeta teen, Justin Bieber. Graças ao canadiano e às exigências de um calendário carrega­do de espetáculos ao vivo, Gomez passou a adolescência, segundo a própria, a cho­rar pelos cantos, com crises recorrentes de depressão. Como atriz, a passagem para a maioridade não correu melhor: em Spring Breakers (2012), de Harmony Korine, Sele­na era uma das miúdas que percorriam as praias do Sul dos EUA ao lado de um dea­ler sociopata, interpretado por James Fran­co, num pequeno festim de sexo e estupefa­cientes – o filme provocou-lhe «um peque­no esgotamento». Em dezembro de 2013, a artista passou 15 dias no Dawn at the Mea­dows, um centro de tratamento de vícios e episódios traumáticos, no Arizona. Quatro meses depois, Selena despedia a mãe e o pa­drasto do cargo de gestores da sua carreira, papel que tinham desempenhado desde a infância da cantora – no universo das cele­bridades adolescentes, o feitiço costuma vi­rar-se contra o feiticeiro.

Já Demetria Devonne Lovato, nascida em Albuquerque, Novo México, filha de um músico de terceira linha e de uma cheer­leader (lá está, a esperança de sucesso con­tinua a transferir-se para a pobre descen­dência), sempre foi um poço de perturba­ções. Vítima de anorexia e bulimia aos 8 anos, Demi era alvo de bullying na escola devido às variações de peso, e lutou contra a balança enquanto sorria em produções da Disney como Barney & Friends (ao lado da amiga Selena) ou Camp Rock, refugiando-se no álcool e na cocaína antes de completar 18 anos. Em novembro de 2010, após dois ál­buns de sucesso e a agressão a uma bailari­na do espetáculo que estrelava com os Jo­nas Brothers, deu entrada numa clínica de luta contra substâncias viciantes. Para trás ficava uma década de automutilações (cor­tava-se nos pulsos) e esgotamentos.

Se a pioneira Shirley Temple foi uma ex­ceção à regra – os tempos eram outros, os mecanismos protetores também, e Temple terminou os dias de estrelato como funcio­nária pública, servindo os EUA como em­baixadora no Gana e na Checoslováquia –, Cyrus, Gomez e Lovato limitaram-se a se­guir o exemplo das maiores estrelas infan­tojuvenis das últimas três décadas: Macau­lay Culkin e Britney Spears.

Culkin, filho de um sacristão de Manhattan – cortou relações com o pai durante anos, no eterno exemplo da revolta da criação con­tra o criador –, era aos 9 anos um dos ros­tos mais familiares do planeta, após a es­treia de Sozinho em Casa, longa-metragem a Touchstone (uma produtora cinemato­gráfica do grupo…Disney), em que inter­pretava um miúdo esquecido por acidente na mansão familiar, cheio de recursos fa­ce a dois gatunos que tentam invadir a pro­priedade. Aos 14 anos, a carreira de Culkin estava morta e enterrada. Hoje, com 33 anos, o menino de oiro passou por relações familiares difíceis, uma detenção policial por posse de substâncias ilícitas e várias tentativas falhadas de ressurreição, a últi­ma das quais ao leme de uma banda de ro­ck satírica, The Pizza Underground, cuja primeira tournée terminou de forma pre­coce, com vaias e cervejas atiradas para o palco. Já Britney Jean Spears, que come­çou a carreira no Mickey Mouse Club, fez uma carreira brilhante até à maturidade – um Grammy, seis MTV Video Music Awards, nove prémios da Billboard e o pos­to de quinta intérprete feminina com mais discos vendidos na história da música an­glo–saxónica, ultrapassando os cem mi­lhões de álbuns. No início dos anos 2000, Britney ainda se foi aguentando. Aos 26 anos, estoirou: comportamento errático, espiral de drogas, filho ao colo enquanto conduzia, cabeça rapada aos farrapos, internamento psiquiátrico involuntário. Agora, aos 33, de­pois da passagem de apenas uma tempora­da pelo júri do concurso de talentos X Factor, Spears parece ter-se conformado com a reforma antecipada de dois anos de resi­dência exclusiva como atração do Planet Hollywood Resort & Casino, em Las Vegas.

E Martina Stoessler? Até à data, a doce e casta Violetta não renegou ainda a admira­ção por Cyrus, Lovato, Gomez ou Britney Spears. Mas tem avisado: não está minima­mente interessada em crescer. Quando lhe falam dos ídolos, responde como o fez nu­ma entrevista recente ao diário argentino La Nacíon, negando a vontade de emanci­pação face à imagem benévola e juvenil: «Ser má não tem nada que ver comigo. Não renego a Violetta. Sou o que sou graças a ela.» Aos 15 anos, quando começou a série, já confessara o mesmo: «Para quê ser ‘má?» Os colegas de elenco, como Mirta Wons, que interpreta Olga, dizem que Tini (como os amigos e fãs a tratam) não para de sorrir durante as rodagens. E ela jura ser tão nor­mal como as amigas de liceu. O pai, o produ­tor de televisão Alejandro Stoessel, repete que a filha tem os pés bem assentes na terra. «O meu pai avisa-me sempre que a fama vai e vem.» Em seis anos de exposição pública – os dois últimos à escala global – Martina atravessou apenas uma polémica, quando uma fotografia sua em biquíni, publicada em dezembro na página da atriz no Insta­gram (onde tem quase 900 mil seguidores), revelava o corpo magro e uns invejáveis ab­dominais. Foi logo acusada de anorexia e de mau exemplo para as adolescentes. Viu-se obrigada a responder o óbvio: «Passo a vida a comer mas sempre fui magra, é genético»; a mãe e o irmão são iguais.

Prestes a chegar à maioridade, com um namorado sete anos mais velho (Peter Lanzani, de 24, também ator de uma sé­rie juvenil, Aliados), Tini Stoessel não po­de, por mais que queira, continuar a fingir que é uma miúda – ninguém é tão perfeito por tanto tempo. Apesar das normas rigo­rosas da Disney (em Violetta, como nas ou­tras séries da casa do Rato Mickey, não se podem exibir grandes tatuagens ou a rou­pa interior das atrizes, como não é permiti­do praguejar), nem mesmo a ficção conge­lará Martina no tempo. Na terceira tempo­rada da série, que só chegará a Portugal em meados deste ano, o grupo do Studio On Beat, a escola/estúdio onde Violetta Cas­tillo e os amigos se iniciaram na música e nos namoricos, corre o risco de se desmo­ronar sob o peso da fama e do sucesso (é a própria sinopse dos episódios que o suge­re). A verdade é que o êxito de Violetta co­meçou há quase vinte anos, quando Cris Morena, uma apresentadora e atriz da TV argentina, lançou um projeto infantoju­venil chamado Chiquititas, com a própria filha, Romina Yan, como protagonista – e regressamos ao papel dos pais nestas sin­gulares epopeias. Enorme sucesso, no país de origem e além-fronteiras (incluindo Portugal), Chiquititas foi seguido por ou­tros triunfos de audiência como Floribella, Anjo Selvagem, Doce Fugitiva, Rebelde Way – todos formatos originais argentinos. A carreira de Romina Yan não mais desco­lou após Chiquititas. Yan retornou ao uni­verso Disney com 28 anos e experimentou as telenovelas adultas antes de morrer tragi­camente de um aneurisma, aos 36 anos. Já Floribella (Floricienta, no original), estreada em 2004, teve como protagonista a jovem Florencia Bertotti. Agora com 31 anos, Ber­totti ainda protagonizava telenovelas juve­nis aos 26, continuando hoje a integrar as tournées de Floribella pela América Latina. Talvez a única solução que resta a Marti­na Stoessler seja mesmo render-se à dis­funcionalidade e desistir de ser boazinha. Afinal, há qualquer coisa de profundamen­te manipulador no universo Disney – e não será a «maldade» bem mais humana?