Vestidos e cérebros em conflito na passadeira vermelha – parte II

Notícias Magazine

Patricia Arquette, nomeada para o Óscar de atriz secundária em Boyhood, chega à passadeira vermelha na noite da gala da entrega das estatuetas. Um combinado saia e top branco e preto, sem um braço – cabelo puxado para trás, simples, quase despenteado. «Caramba, podia ter passado pelo cabeleireiro», dizia um dos muitos posts que me invadiram o mural do Facebook nessa noite, que deixou definitivamente de ser de talentos e passou a desfile de modelitos.

A atriz ganha o Óscar, sobe ao palco e faz um discurso feminista. Diz qualquer coisa como: nós, que já lutámos tanto pelos direitos dos outros, negros, homossexuais, vamos agora lutar pelos nossos. Os das mulheres, claro. Na plateia, Jennifer Lopez e Meryl Streep gritam «Yes! Yes!» As câmaras focam-nas. E a razão do discurso: Jennifer Lawrence. O escândalo dos e-mails da Sony revelou que a actriz ganhara menos 2% nos lucros de Golpada Americana do que os seus companheiros de equipa masculinos, Christian Bale e Bradley Cooper.

Numa cerimónia morna, os – poucos – momentos altos foram cada um que levava mais uma estatueta para casa a puxar a brasa à sua causa. Os homossexuais, as pessoas que sofrem de Alzheimer, os doentes com esclerose lateral amiotrófica… e as mulheres. Patricia Arquette foi, no entanto, a que mais deu nas vistas e nas redes sociais.

Durante o discurso, o cabelo de Arquette vai-se soltando em pequenas madeixas do carrapito. Um toque de desacerto que, acentuado pelos pés-de-galinha nos olhos da estrela madura, a figura menos do que perfeita, os óculos para a miopia da idade, acrescentam seriedade à mensagem. Dão-lhe força. Esse, o mesmo cabelo que tinha sido há poucas horas criticado nas redes sociais – e não apenas no meu mural.

Estranho mundo, este, o que não desculpa uma madeixa fora do sítio mas aplaude um discurso feminista. Que exige igualdade, mas obriga as mulheres artistas à ditadura da aparência e da imagem. E nem Patricia Arquette nem Meryl Streep, e muito menos Jennifer Lopez, são indiferentes a esta incongruência. Elas, mulheres inteligentes que se deixam aprisionar na futilidade da passadeira vermelha.

#Ask Her More. Já aqui falei desde movimento que exige às coberturas televisivas que perguntem às atrizes mais do que a origem das suas fatiotas. Houve quem tivesse perfilhado a causa. Reese Witherspoon respondeu mal aos repórteres. Disse que os vestidos eram bonitos, as atrizes adoravam-nos, mas que aquelas mulheres eram mais do que meros cabides, estavam ali para falar do trabalho que faziam. «E é duro ser mulher em Hollywood», rematou. Quando lhe perguntaram sobre as joias, Laura Dern respondeu: «É um anel que apoia a luta contra o cancro do pulmão.»

Três casos isolados. Porque, de facto, para quê ir mais longe se não é isso que o público quer? Falar de trabalho, de cinema, se a turba indistinta de milhões de telespetadores do mundo inteiro quer apenas desligar o cérebro e desatar a língua afiada. «Ai, a Lupita está coberta de pérolas? Mas o que é que deu a uma miúda para se vestir como uma avó?»

As minhas amigas – as mesmas que encheram a minha timeline no Facebook de críticas de moda naquela noite – já me disseram que estou séria de mais, que devia gozar e deixar gozar os prazeres da passadeira vermelha. Mas eu não consigo deixar de pensar que isto é uma camisa-de-onze-varas em que estamos todas metidas. E sorrindo. Muito elegantes. Sempre muito elegantes.

[Publicado originalmente na edição de 1 de março de 2015]