Questões fúteis e pensamentos importantes

Notícias Magazine

Desde que comecei a cantar e a encontrar depois as pessoas que me tinham estado a ver, que as ouço dizer, com espan­to, que sou muito mais baixa do que pareço em palco ou na televi­são. Comecei a pensar que o fenómeno não se deveria passar só comigo e fui investigar.

Devo confessar que a maioria dos artistas que pesquisei são bastante mais baixos do que imaginava. Confirma-se, portanto, a percepção distorcida que a televisão ou o palco dá acerca de al­guém. Elis Regina dizia que tudo seria melhor se tivesse mais dez centímetros. Com o meu metro e sessenta, não me importo mui­to de ser mais baixa do que a maioria dos que me rodeia. Assumi o facto como forma de estar na vida e nem saberia ser de maneira diferente. Assim é o meu mundo.

Mas não é sobre a minha altura ou a altura de outras pes­soas que queria falar. Apenas percebi, enquanto pesquisava na internet, que estes dados físicos eram muito fáceis de obter rela­tivamente a artistas internacionais e muito difíceis de obter em relação a artistas nacionais.

Olhando com mais atenção, constato uma coisa en­graçada. O mundo anglo-saxónico, conhecido por ser sucinto e objectivo em tudo o que concerne informação textual e pensamen­to, mostra-se bastante mais prolífico do que o mundo lusitano no perfil dos artistas.

Sabe-se que existe uma cultura bastante mais agressiva de invasão da vida privada nos países de língua inglesa, quando comparados com o nosso país. Há, também, uma cultura muito forte baseada em ser-se uma «celebridade», com toda a superficia­lidade que tal implica. Saber a altura de alguém famoso não deixa de ser uma superficialidade, é verdade. Contudo, atrevo-me a re­lacionar esta falta de informação física com uma certa falta de in­formação que constato quando pesquiso questões mais sérias re­lativas ao trabalho de algum músico português. Nomeadamente, a análise das canções, poemas, arranjos, alguma informação biográfica pertinente e uma análise mais detalhada e académica acerca da sua obra e vida.

Não raras vezes, ao ouvir uma canção, procuro entender melhor algumas passagens da letra, querendo contextualizá-las. Faço uma primeira pesquisa na internet, para tentar encontrar re­ferências bibliográficas ou artigos que sejam públicos e partilha­dos livremente. Com algumas excepções, uma parte considerável não encontra resultados.

Há um conhecimento público e partilhado muito limita­do acerca de algumas das mais importantes obras musicais por­tuguesas. Não há, portanto, muita gente que disponha o seu tem­po a tratar das mesmas para usufruto público e partilha de conhecimento.

Se será fruto de uma falta de curiosidade acerca do trabalho dos artistas ou se derivará de uma descrença na importância cul­tural do trabalho artístico não se saberá. No entanto, talvez pos­samos extravasar as fronteiras artísticas e achar que este fenóme­no possa estar ligado ao endémico abandono e, até mesmo, des­prezo a que o nosso património está votado. Por património considero tanto a riqueza natural com que fomos brindados den­tro das linhas que formam o nosso país como a riqueza arquitec­tónica que fomos sabendo construir ao longo de séculos, como a riqueza cultural que os nossos antepassados nos deixaram.

Tanta riqueza tão mal aproveitada e, sobretudo, tanta ri­queza destruída para dar passagem a outra riqueza, enganadora, porque, parecendo enriquecer, vai destituindo quem tanto a pro­cura. Podemos ter partido do fútil, mas creio que nos detivemos no importante.

ANA BACALHAU ESCREVE DE ACORDO COM A ANTIGA ORTOGRAFIA

[Publicado originalmente na edição de 8 de fevereiro de 2015]