Ossos do ofício

E que trataram pernas partidas e maxilares desencaixados – ou porque têm «um dom» ou porque aprenderam com outros antes deles. Os médicos falam em «práticas perigosas», mas os clientes continuam a fazer fila à porta dos endireitas.

«ENDIREITA? Não conheço», respondem-nos, quando pedimos indicações para a casa de Rui Pereira, em Monte Real (Leiria). «Mas conheço quem tire as cartas de tarot.» Quem nunca pediu ajuda a um destes «habilidosos», como lhes chamam os médicos em tom irónico, tende a colocá-los no mesmo lote de videntes e cartomantes. A culpa é dos próprios endireitas. Garantem ser necessário ter um «dom» para colocar os ossos no lugar ou encontrar o caminho para nervos e tendões desviados. Afirmam que é coisa que não se ensina, apesar de eles terem aprendido com familiares ou vizinhos. Hoje já restam poucos, mas o misticismo continua a atrair clientela e há mesmo casos de fisioterapeutas e massagistas que se intitulam endireitas, apesar das habilitações e do diploma na parede. Sabem que as pessoas ainda cedem ao fascínio destes homens e mulheres com «mãos de ouro». Os médicos recordam quando estas práticas, que consideram perigosas, levavam a amputações de membros ou a paralisias e aconselham os pacientes a consultarem técnicos habilitados. Mesmo assim, há atletas e figuras conhecidas que já recorreram a esta «ajuda». Que ainda por cima tem custos controlados. «Não cobro nada, cada pessoa dá o que quer ou o que pode.» A resposta foi unânime para os vários endireitas com quem falámos.

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Rui Pereira é endireita há 25 anos.

Rui Pereira quase ficou famoso quando, em 2011, foi convidado para um programa da tarde, na TVI. Em direto, deu «um jeito» no joelho de uma mulher que se queixava de dificuldades em andar. Depois disso, e para aproveitar o embalo da publicidade gratuita, criou uma página na internet. «Dorme bem? Tem dores na coluna? Adormecem-lhe os braços? Por vezes sente as pernas dormentes? Não sofra mais. Consulte-me, não se arrependerá.» E disponibiliza o número de telemóvel. Foi por aqui que o localizámos. Marcámos o encontro para o dia seguinte. E estávamos na rua certa, afinal, quando pedimos as indicações.

Rui espera à porta do rés-do-chão de uma casa modesta. Hoje não há ninguém para atender: «Estou em mudanças.» Diz que chegou a ter um «consultório grande», também em Monte Real, mas agora vive em casa do pai. É na sala que recebe as pessoas. A divisão tem um sofá castanho e duas cadeiras encostadas à parede. Desde 2011, quando foi à televisão, emagreceu, mas os olhos azuis continuam atentos e o discurso é rápido, como se estivesse habituado a responder a perguntas. Aprendeu a ser endireita com um antigo cliente dos pais, proprietários de uma pensão. «Reencontrei-o no Alentejo e pedi-lhe para me ensinar. Ele não queria, mas lá cedeu.» Como é que se aprende? «A observar. Ele obrigava-me a assistir vezes sem conta, até ter a certeza de que eu o conseguia fazer.» Rui Pereira, hoje com 48 anos, tinha pouco mais de vinte quando começou a «tratar» os clientes que apareciam. «Venho à sua procura porque tenho aqui uma dor», diziam. No pé ou no pulso, na coluna ou na anca. Não interessa. Ele garante que sabe tratar tudo o que lhe está ao alcance. «Também estudei, li muito, decorei todos os ossos e os músculos do corpo, sei onde passam os nervos», garante. «E há coisas em que não mexo. Há dores que estão a camuflar problemas mais graves, como uma inflamação ou um cancro.» E o que faz, então? «Digo para irem ao médico.»

As histórias sucedem-se. Impossível saber se são reais ou não. «Hoje fui a casa de cinco pessoas que estavam na cama, não se podiam levantar. Às vezes basta dar um jeito na coluna ou numa perna e já se conseguem mexer outra vez.»

CONTA QUE JÁ ESTEVE DOIS DIAS num apartamento, em Setúbal, e que atendeu quase duzentos clientes. Ou que chegaram a oferecer-lhe 500 euros só por ter ajudado um funcionário de uma embaixada que tinha uma dor num dedo do pé. «Era um nervo desviado.» Do mesmo paciente que depois lhe enviou muitas pessoas para tratar. «Vi vários táxis pararem à minha porta e era gente de dinheiro.» De que sofriam? «Doenças de ricos. Muitas neuroses, muitas falsas psicoses. Queixavam-se da perna ou do braço, mas não tinham nada. Achavam que eu era curandeiro.» Rui sabe que os médicos desaconselham os pacientes a recorrer a endireitas. «Há falsos endireitas e esses podem fazer muito mal.»

Rui Pereira assume que esta atividade é a única que tem e que é possível viver do que ganha a «ajudar as pessoas». E se as pessoas não derem nada? «Todas dão. E nunca veio cá ninguém que eu não pudesse tratar e nunca tive um caso de insucesso». Chama então o pai, com quem vive desde que se divorciou pela segunda vez e a quem costuma tratar da coluna. Aníbal Pereira, 74 anos, despe a camisa e entrega-se às mãos do filho. Rui esfrega as mãos numa solução de álcool e vinagre e estica as costas e os braços do pai, vira-lhe o pescoço para a direita e para a esquerda, para cima e para baixo. Ouvem-se estalidos. No final, pede a Aníbal para respirar fundo. «Já me sinto outro», diz o homem. E sorri. Afinal, é o filho.

À despedida, olhamos em volta da sala e perguntamos se não é necessário uma marquesa onde os pacientes se deitem, um conforto acrescido. «Só preciso de dois metros por dois metros. E das minhas mãos.»

É num espaço precisamente com essa área que trabalha Américo Silva Santos. Aos 82 anos, até já deu o nome a uma rua da freguesia onde vive, Silva Escura, na Maia (Porto), tal a fama que tem. No portão verde do número 154 da Travessa Central de Frejufe, a placa avisa: «Atendimento: das 15h00 às 20h00, de segunda a sábado.» Não há campainha nem é preciso bater à porta. As pessoas são recebidas por ordem de chegada. Passam à frente se forem familiares de Américo ou se vierem de muito longe – há quem chegue de Lisboa ou mesmo do estrangeiro, garante. Mas é preciso avisar. Quando chegámos, passavam poucos minutos das quatro da tarde e já os dois bancos corridos, de ambos os lados do pátio do outro lado do portão, estavam cheios. Mulheres e homens, de todas as idades, algumas crianças a acompanhar os pais. Todos se queixavam. Entorse, pulso torcido, dor nas costas. Ninguém se queixava do tempo de espera, mas sim da presença de jornalistas. Os queixosos não querem mais publicidade ao «santo» particular.

GEORGIANA ESPEROU HORA E MEIA para ser atendida. Tem 30 anos, é de Matosinhos e é a primeira vez que ali vai, depois de ter ouvido falar do «endireita da Maia». «Dei um jeito no ombro há uma semana, fui ao hospital levar uma injeção, mas a dor não passa.» Américo recebe-a de bata branca e luvas de plástico. Cheira a mentol, dentro do pequeno gabinete. Ao lado, numa mesa pequena, há ligaduras e adesivos. Nas paredes, uma imagem do papa João Paulo II e um quadro com duas mãos pintadas, oferta de um doente que dizia que Américo tinha «mãos de ouro». A porta está sempre aberta. Georgiana tira a camisola, imune à vergonha ou às pessoas que se aproximam para espreitarem, ansiosas que chegue a sua vez. «Tem isto fora do sítio. Não foi tombo?» «Não, eu não caí», responde ela. O endireita levanta-lhe o braço, ouve-se um estalido e a seguir passa-lhe a mesma pomada que irá usar em todas as maleitas dos clientes seguintes. Põe-lhe uma ligadura no braço. Pergunta se ainda lhe dói. Georgiana diz que sim. Américo recomenda- lhe descanso e, se não passar, que volte na próxima semana. «Quanto lhe devo?» «Vá à sua vida», responde o homem.

Há mais de quarenta anos que Américo é endireita. «Não se ensina, é um dom que se tem e eu tenho este, por isso tenho de ajudar as pessoas.» Atende cerca de sessenta clientes por dia e só descansa ao domingo. Conta que já atendeu atletas conhecidas, como Fernanda Ribeiro e Albertina Dias, e que esta até lhe terá oferecido uma taça depois de Américo a ajudar a curar uma entorse. Jorge Gabriel também já passou pelo pequeno gabinete. «Magoei-me no tornozelo num jogo de futebol e um amigo meu falou-me do endireita da Maia», diz o apresentador de televisão. «Fez-me uma massagem e fiquei bom, nem precisei de lá voltar.» Américo Silva orgulha-se destas histórias. «Vêm cá médicos, padres e advogados. Trato toda a gente.» Quanto a preços, a regra é a mesma: «Cada um dá o que quer.» Mas há despesas. «Gasto mil ligaduras de três em três semanas, são 80 contos. E a pomada é um farmacêutico meu amigo que faz e vende-me ao balde, custa dez contos cada um. Não dura uma semana.» Quais os componentes da pomada? Américo diz que não sabe.

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José Azenha vem de uma família de «amanhadores», como lhes chamam no Alentejo.

José Azenha, 72 anos, não usa pomadas nem ligaduras. Também não é conhecido como endireita, mas como amanhador. No Alentejo, os endireitas são os que «amanham» os ossos, que os voltam a pôr no lugar. José tem ligações a uma antiga família de endireitas: Manuel, Joaquim e António, pai e filhos, seus primos. Já morreram todos, mas ainda há quem indique o nome de um deles quando perguntamos por quem amanhe em Santiago do Cacém. Foi assim que chegámos a Sonega. Antes, foi preciso parar nos cafés da Rua 1º de Maio e perguntar por ele – é ali que costuma estar, depois de tratar do campo e dos animais. Abriu-nos a porta desconfiado e confirmou que sim, que amanhava. De poucas falas, convidou-nos a entrar para a pequena sala, com um sofá, uma televisão e a marquesa: o lugar onde descansa e trata de quem o procura. Não aprendeu com ninguém a endireitar os ossos, mas o pai também o fazia. Percebeu, mais tarde, que tinha «vocação». Garante que a dor ciática é a mais complicada e uma das mais difíceis de tratar. «Ainda ontem veio aí uma pessoa com uma dor dessas, dei-lhe um puxão numa perna e ficou boa.» Parece simples.

Manuel «Ferreirinha» também é amanhador. Aos 60 anos, não há dia em que chegue a casa, no concelho de Odemira, vindo do trabalho no campo, e não encontre pessoas à porta. Não se recusa a tratar nenhuma. «Antes do 25 de Abril estávamos proibidos de amanhar. A um tio meu obrigaram-no a deixar de amanhar ou prendiam-no.» No dia em que o encontrámos chegou a casa às sete da tarde e já tinha Cláudia Simões, 22 anos, à espera. «Torci o pulso a arrancar umas ervas e estou assim há uma semana. Disseram-me para vir aqui.» Antes de descarregar os sacos com a fruta que andou a apanhar para os porcos, Manuel chama a jovem para dentro. Cláudia não nos deixa entrar para assistir ao tratamento mas no final admite: «Não doeu e já estou melhor.» Manuel Ferreira entoa o mesmo cântico de quase todos os endireitas: «Isto não se aprende, sente-se.»

Ferreirinha lembra-se de quando tinha 9 anos e levou uma cabeçada de um boi. «Parti a perna em dois sítios e foi o meu pai quem me curou.» Aos 16 anos partiu um braço e foi também o pai que o ajudou. E ir ao médico? «Não foi preciso», responde, a rir. Um dos casos mais graves que tratou foi o de um homem de 80 anos com o maxilar desencaixado. «Tive de desencaixar tudo e voltar a encaixar. Não gostei nada de fazer isso, é muito perigoso. Correu bem, mas e se corresse mal?» Por isso é que garante não tratar «braços ou pernas partidos ou pessoas que estejam muito fraquinhas. Nesses casos, mando-as logo para o médico».

Mas este não é um trabalho qualquer. «É uma obrigação.» E cansa. «Aos fins de semana e aos feriados escapo-me para o campo. É onde eu gosto de estar. Imagino que os médicos também fiquem cansados de ver tanta gente com problemas.» Entretanto, o telemóvel toca duas vezes. Até às nove da noite, ainda irá atender duas pessoas. Antes de regressarmos a Lisboa, Ferreirinha recebe um cliente habitual. António Pinto vem de Sines a Odemira (quarenta quilómetros) todos os meses para «voltar a andar direito». «No hospital só me dão injeções e fico sem reação.» «Tem hérnias discais e ciática», diz o endireita. «Eu dou-lhe um jeito nas costas mas ele devia descansar. Se não descansar, vai ficar igual.»

OS PROFISSIONAIS DE SAÚDE é que não se conformam. Por muito bons resultados que os endireitas possam apresentar. «Às vezes, a manipulação da coluna pode dar resultado, porque existem pequenas articulações que encravam e isso pode ajudar provisoriamente, mas não resulta em definitivo», diz o professor Trigo Cabral, antigo diretor do serviço de ortopedia do Hospital de São João, no Porto. O clínico lembra-se de que no início da carreira os casos de pessoas com graves problemas resultantes dos «jeitos» dados por endireitas eram muitos, e com consequências dramáticas. «Hoje as pessoas estão mais esclarecidas e o que existe são formas mais leves de fazer esse trabalho. Mas é inútil porque apenas alivia, não resolve o problema.» Se houver um acidente, as pessoas podem sempre queixar-se e os endireitas arriscam-se a pesadas multas em tribunal, mas nem por isso a prática deixa de existir. «E existe a vergonha. Ninguém quer dizer que foi a um endireita e que correu mal.» Para Abel Nascimento, ortopedista e ex-diretor do serviço de ortopedia dos Hospitais da Universidade de Coimbra, os endireitas são «resultado da iliteracia de um povo, um absurdo».

Mas nem sempre médicos e endireitas andam de costas voltadas. Pelo menos a fazer crer em alguns relatos. «Caí de um escadote e dei um jeito num braço», disse Américo Santos. «Fui ao Hospital de São João [Porto] e o médico voltou a pôr tudo no sítio. No fim, perguntou-me se tinha feito tudo bem. Eu disse que sim». Também Manuel Ferreira garante que já recebeu médicos em sua casa. «Alguns até sabem fazer aquilo que eu faço, mas são poucos. É preciso ter vocação.»