Os portugueses que conquistaram a Califórnia

Seis gerações de emigrantes no Estado Dourado. É esse o tema de Portuguese in California, o documentário de homenagem à história da diáspora nos EUA e que chegou nesta semana aos Açores.

Durante três anos, Nelson Ponta-Garça andou atrás das histórias que levaram milhares de portugueses para a Califórnia nos últimos duzentos anos. Das famílias que criaram impérios com a batata-doce, a pesca do atum e a criação de gado. Dos artistas bem-sucedidos em Hollywood, como o ator Joaquim de Almeida e o músico Nuno Bettencourt, e dos políticos poderosos, como os congressistas Jim Costa e Devin Nunes. Há um legado lusitano que persiste no Estado Dourado, e o realizador português queria contar essas histórias em vídeo. O documentário, com poucos apoios e muito desenrascanço, ficou pronto no final do ano passado. Chama-se Portuguese in California, foi produzido pela NPG Productions e pela Azores TV – 90% da emigração portuguesa na Califórnia é oriunda dos Açores – e estreou-se em São Miguel na semana passada.

«Foi mesmo um projeto de coração», diz o realizador. «O que em Portugal chamamos de saudade.» Nelson Ponta-Garça, 34 anos, nasceu em Los Gatos, na Califórnia, filho de emigrantes. Quando tinha 6 anos, a família regressou a Portugal, onde fez todos os estudos até 2000. Nelson queria ser pianista, por isso regressou aos Estados Unidos, com 19 anos. Primeiro a Boston, para estudar no Berklee College of Music, e depois à Califórnia. Não concretizou o sonho musical e acabou a fundar uma produtora em Silicon Valley, a NPG Productions. Sente-se nele essa portugalidade que é difícil de descrever para quem vive em Portugal, mas se torna mais distinta para quem emigra e de repente está longe de tudo.

A ideia do documentário surgiu há quatro anos, quando produziu um vídeo para a visita do Presidente Cavaco Silva à Califórnia. Percebeu que não estava documentada a história incrível dos portugueses que emigraram para este estado na Costa Oeste dos EUA e aí deixaram um enorme legado. «Foi um trabalho de baixo orçamento, com muitas colaborações.» Recorreu a toda a ajuda que pôde encontrar, em qualquer lado. Quem faz voz off em inglês é um veterano de Hollywood, Peter Mason. A versão portuguesa é narrada por Filipe Sá, que Ponta-Garça encontrou em Coimbra. O desenho gráfico foi feito na ilha do Pico e a produção ficou a cargo de Sandra Meirelles Menino e Fernando Fragata, que trabalharam juntos em filmes como Contraluz e Sorte Nula.

«Foi um projeto verdadeiramente global.» Demorou três anos a completar porque foi um trabalho colossal: o de desenterrar imagens de arquivo, descobrir histórias, pesquisar e encontrar famílias e falar com toda a gente – ao todo, 130 entrevistas. «Foi à portuga: fez-se isto com gosto, com alma. Agora vamos rentabilizar só mesmo para cobrir os custos.» O
documentário está disponível para alugar (12 euros por mês) ou para comprar no site portugueseincalifornia. com, na Amazon e no Vimeo (cerca de trinta euros). E ainda poderá chegar ao iTunes.

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Embora tenha recebido apoio do governo de Portugal, do governo dos Açores e da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, foi difícil financiar o documentário. «Eu nunca mais faço nada disto, a não ser que tenha dois ou três financiadores. Querem, pagam, faz-se.» Mas a verdade é que Ponta-Garça já está a planear novos empreendimentos, embora não com este formato.

«O documentário está dividido em nove episódios, porque queríamos que ficasse um registo histórico, para lá do resultado comercial. Há histórias de pessoas fantásticas que daqui a cinco, dez, quinze anos já não estão cá.»

Uma dessas histórias é a de Manuel Eduardo Vieira, o «rei da batata-doce», que lidera a A. V. Thomas Produce. Fundada em 1960, a empresa exporta para os EUA, o Canadá e o México, e é a maior produtora biológica de batata-doce do mundo. Também se conta como Luís Bettencourt se tornou o maior produtor mundial de leite, com sessenta mil vacas, depois de emigrar para a Califórnia em 1969. Há exemplos na tecnologia, na política, nas artes, no meio académico e no mundo dos negócios.

A importância da comunidade portuguesa é tão grande que a cidade de San Leandro erigiu uma estátua ao imigrante português em 1964, feita de puro mármore nacional. Em San Diego, onde vive uma das maiores comunidades de lusodescendentes do sul da Califórnia, o impacto dos imigrantes portugueses, muitos deles pescadores oriundos dos Açores, foi tremendo. O documentário conta como o pioneiro Manuel F. Cabral, natural do Pico, chegou a Point Loma em 1851 e em 1897 esteve no grupo de 25 pescadores que fundaram a Companhia Portuguesa das Pescas, que viria a tornar-se uma referência. Depois, em 1913, o açoriano Joseph Azevedo chegou a Point Loma e fundou a San Diego Packing Company, inicialmente no seu quintal. Conseguiu revolucionar a indústria ao criar a primeira fábrica de conservas de atum, que poucos anos mais tarde seriam as favoritas para a subsistência dos soldados norte-americanos a lutar na Europa, durante a Primeira Guerra Mundial.

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Mas há mais. Uma história fascinante é a revelação de que a marinha norte-americana requisitou atuneiros portugueses para o serviço militar na Segunda Guerra Mundial. Aconteceu a 15 de Fevereiro de 1942, dois meses depois de aviões militares japoneses terem bombardeado a frota marítima dos Estados Unidos em Pearl Harbor, no Hawai. O documentário revela que seiscentos pescadores portugueses e lusodescendentes se voluntariaram para lutar no exército norte-americano e que 47 barcos de pesca foram mobilizados na guerra.

As histórias de heroísmo, resiliência e engenho são deliciosas. A estreia do documentário em Los Angeles, em dezembro passado, decorreu na localidade de Artesia, onde reside a maior comunidade portuguesa do sul da Califórnia. Havia pastéis de bacalhau, toucinho-do-céu e vinho do Porto – iguarias patrocinadas pelo Banif, que quis associar-se à estreia. Centenas de portugueses e lusodescendentes apareceram no Artesia D.E.S. Hall, da associação com o mesmo nome, onde o documentário se estreou. Criada em 1927, a instituição não só tem uma banda filarmónica como também uma praça de touros e noites de fado. Mantém uma tradição dos imigrantes portugueses na Califórnia, a de criarem irmandades e associações fraternais para se apoiarem e manterem viva a memória de Portugal. Os participantes (primeiro só homens) contribuíam com um dólar no caso de morte de um colega, que era entregue à viúva e aos filhos – daí nasceram negócios de seguros e bolsas de estudo. A mais influente era a União Portuguesa do Estado da Califórnia (UPEC), que existia a par de outras como a Sociedade do Espírito Santo e a Irmandade do Divino Espírito Santo. A componente religiosa não existe por acaso: até hoje, as festas do Espírito Santo são uma tradição seguida pelos lusodescendentes.

Muitos dos que estiveram no Artesia D.E.S. Hall nem falam português. Como Jane Rocha, descendente do primeiro emigrante português documentado na Califórnia, António José Rocha, que chegou em 1814 quando Los Angeles tinha apenas seiscentas pessoas. «Adorei o documentário», disse, entusiasmada, lembrando as aventuras que lhe contavam quando era pequena. Fala com orgulho do nome de família, imortalizado na Rocha Adobe House, uma casa histórica ainda hoje preservada na cidade.

Tantas imagens do passado trouxeram algumas lágrimas durante a exibição do compacto do documentário, um best of em hora e meia bem embrulhado na banda sonora de Nuno Malo, compositor português radicado em Los Angeles e que chegou às pré-nomeações para os Óscares 2015 com o filme No God, no Master.

A próxima fase do projeto é chegar à televisão portuguesa, mas ainda não há acordos. «O que já existiu foram contactos e houve interesse da SIC, da TVI e da RTP.» Também está em negociação a compra do documentário bilingue por canais norte- americanos, como a PBS ou o History Channel – gostaram da história e da qualidade do trabalho, mas querem algo mais global. «Por isso, estamos a trabalhar em Portuguese in America. Estou na fase de pré-produção, de alinhar contactos, financiamento, modelo.» Deverá custar o mesmo porque será um documentário curto, de 50 minutos.

É na Califórnia que vive é a maior comunidade portuguesa nos Estados Unidos – calcula-se que haja um milhão de portugueses e lusodescendentes. «Mas não se nota», frisa Ponta-Garça. «Aqui na Califórnia, os portugueses estão menos concentrados.» Há alguns restaurantes conhecidos, o LaSalette em Napa Valley, o Sousa em San Jose, o Natas em Los Angeles. «Na Costa Leste, numa rua há meia dúzia, em Toronto há vinte padarias portuguesas. Aqui não. É uma comunidade muito assimilada.»

«Venho de uma família portuguesa», diz Amanda, uma cantora de San Diego. «Este documentário presta homenagem à nossa cultura e dá-nos uma ferramenta para ensinar quem não a conhece. Representa esse sentido de família.» Foi disso também que falaram Connie Goulart e Liz Rodrigues, duas das produtoras executivas que ajudaram o documentário a ver a luz do dia. «Temos de deixar um legado para os nossos filhos e netos», diz Connie.

Agora, está pronto para ser mostrado ao mundo. Um artefacto em vídeo do caminho que os portugueses fizeram, e continuam a fazer, no sol da Califórnia.