Os desafios de educar uma criança hoje

As crianças precisam de tempo – e de espaço – para viver a infância. E os adultos têm o dever de lhes proporcionar as condições para elas poderem experimentar, criar, interrogar, imaginar e viver. Sete personalidades de diversas áreas destacam os desafios que se colocam hoje às crianças – e aos adultos que as educam – para garantir um melhor amanhã.

CARLOS FIOLHAIS, FÍSICO
ENSINAR A FALHAR E RECOMEÇAR
«As crianças vêm ao mundo cheias de curiosidade e há que aproveitar da melhor maneira essa mola interior que as leva a descobrir o mundo. Só temos de estimular a curiosidade, que é a fonte de toda a ciência.» Carlos Fiolhais, professor da Universidade de Coimbra e responsável da área do Conhecimento da Fundação Francisco Manuel dos Santos, defende a importância da experiência. Da experimentação. «Um bebé crescerá tanto mais quanto mais observar e mexer. Logo perguntará “porquê”. O que temos de fazer é levar as crianças a descobrir os porquês proporcionando-lhes experiências simples.»

Pode ser apenas construir um barco de plasticina, tentando pô-lo a flutuar ou ver o que acontece a um balão dentro de um frigorífico. «Ou ainda verificar se um papel embrulhado cai mais depressa do que o mesmo papel direito. A ciência a brincar é o começo da ciência a sério.» Carlos Fiolhais gosta que as crianças lhe façam perguntas. Umas querem saber porque é o que o céu é azul, porque é que as plantas não se movem como os animais, como é o que os aviões se aguentam no ar. «É sempre um desafio responder de modo simples mas verdadeiro. O importante é encorajar o aparecimento de questões. Dizer-lhes para perguntarem e voltarem a perguntar. E para procurarem eles próprios ver qual será a melhor resposta.»

Viver no mundo real passou a ser um desafio, quando o virtual desperta muito interesse. Corre-se o risco de, embrenhados nos tablets e smartphones, se perder a noção da realidade. «O mundo não é um ecrã de computador, onde possamos mudar coisas com um clique.» Carlos Fiolhais não é fundamentalista nem quer «banir o virtual», mas gostava que fosse usado com conta, peso e medida, com o devido controlo dos pais, educadores e professores. Nada pode substituir «as brincadeiras ao ar livre, o andar de bicicleta ou jogar à bola». No mundo real, cai-se, esfola-se os joelhos «mas aprende-se» e a criança fica «amiga de quem o ajuda a levantar-se». Como grande desafio deste tipo de acontecimentos surge a lição de vida de «falhar e recomeçar após um falhanço».

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ANA JORGE, PEDIATRA
CULTIVAR BONS HÁBITOS
O seu filho de 2, 3 anos é muito irrequieto e dizem-lhe contantemente que é hiperativo? Nada de pânico. Segundo a médica pediatra Ana Jorge, «é normal que uma criança desta idade não consiga estar sentada muito tempo. Há um risco muito grande em rotular estas crianças. A hiperatividade é a doença da moda». Apesar de «os miúdos» de hoje terem o tempo muito ocupado entre a escola e as atividades extracurriculares, onde está o espaço para brincarem? Essa é a grande questão para a ex-ministra da Saúde. «Precisam de ter um tempo em que estão sentados sem estarem envolvidos numa atividade organizada.» Por isso não se apoquente quando o seu filho desarrumar o quarto ou «destruir» um brinquedo. Significa que está a descobrir e a desenvolver a criatividade. «As crianças desmancham os brinquedos porque querem ver como são por dentro.»

A velocidade com que os desafios se colocam às crianças é hoje muito mais intensa do que no tempo dos pais, avós ou outros familiares. «As crianças têm de ter as coisas à medida do seu crescimento. Vivem tudo depressa de mais, fora de época, o que não ajuda ao desenvolvimento da maturidade e do que é essencial para o crescimento saudável.» O facto de terem acesso facilitado a tudo leva a que «não brinquem na rua» por diversos motivos. O sedentarismo vem agarrado a esta realidade dos novos tempos, fazendo que as crianças não gastem energias, não pratiquem exercício físico e desenvolvam mais depressa excesso de peso e obesidade. Os cuidados com a alimentação, por outro lado, estão comprometidos com a possibilidade de aceder muito facilmente a tudo o que é menos saudável. «Portugal tem uma percentagem muito elevada de crianças com excesso de peso e de obesidade que está muito relacionada com todas estas manifestações do comportamento, de falta de exercício físico e dos hábitos alimentares que estão já enraizados.»

Um dos desafios hoje passa então por alterar os estilos de vida das crianças para que não haja doenças no adulto. «Julgo que se deve apostar mais na promoção da saúde», conclui Ana Jorge, que também tem a tarefa constante de organizar a sua agenda para poder estar com os seus cinco netos. E consegue.

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JOÃO ARMANDO GONÇALVES, PRESIDENTE DO COMITÉ MUNDIAL DO ESCUTISMO
LEVAR A EXPERIMENTAR
Um certo confinamento a determinados espaços próprios, o tempo limitado e o facto de os adultos não ouvirem as crianças são os três principais desafios para as crianças de hoje na opinião de João Armando Gonçalves. «As crianças passam de uns espaços para outros que lhes são reservados tirando-lhes a possibilidade de ter experiências em primeira mão.» Os pais querem proteger os filhos mas não «estão a deixá-los cair, a permitir que errem e corrijam os erros». É pouco o espaço que as crianças têm para explorar, como se os pais quisessem colocá-las «numa verdadeira redoma de onde só saem quando o percurso académico terminar». Ainda que se desenvolvam do ponto de vista académico, existem situações na vida real que são necessárias para o desenvolvimento do crescimento, sobretudo no que respeita à aquisição de atitudes e competências determinantes para a idade adulta.

A questão do tempo é também determinante e foi o mote para que João Armando Gonçalves desenvolvesse uma tese de doutoramento em que trabalhou com um grupo de adolescentes de uma escola em Proença-a-Nova. Durante um ano, decidiu ouvir, em vários momentos, jovens dos 13 aos 18 anos envolvendo ainda mais de cem crianças em ocasiões pontuais do projeto. «O tempo que têm ocupado em atividades é fenomenal, não tendo possibilidade para estar, inventar e fazer simplesmente o que lhes apetece. Não podemos ajudar o futuro das crianças se não as ouvirmos e não as deixarmos participar.» Como antítese de todos estes desafios, o escutismo permite o contacto direto e as experiências em primeira mão. «O contacto com o mundo real é essencial para fornecer algumas soft skills, que vão ser determinantes para a vida futura», além de promover um diálogo intergeracional. Há  cerca de oitenta mil escuteiros em Portugal e quarenta milhões espalhados por 162 países. Muitos deles passam o testemunho aos filhos e é nessa tradição familiar que João Armando Gonçalves avalia o sucesso da atividade. «Dá-me imensa satisfação receber pais que vêm com os filhos, pois percebemos que os valores se mantiveram ao longo da vida e que valeu a pena.»

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FERNANDA SERRANO, ATRIZ
DEMONSTRAR EMOÇÕES
Grávida do quarto filho, Fernanda Serrano lança logo um alerta: é fundamental avisar quem está a pensar ter filhos acerca da responsabilidade de tal decisão. «Nunca deixem os filhos para segundo ou terceiro plano. Eles existem única e exclusivamente por nossa vontade e desejo.» Por isso, como prioridades absolutas da paternidade destaca «o amar, o cuidar, educar e formar o mais possível.»

A atriz tem diariamente a árdua tarefa de «tentar controlar ao máximo tudo o que está à mercê de um click». Como os filhos ainda são pequenos, consegue que sejam cumpridas as regras implementadas, mas tem consciência de que a gestão «vai apertar em breve». Está consciente de que não é possível «vigiar todos os passos dos filhos durante as 24 horas de cada dia», pelo que o investimento em educação, formação e informação torna-se imprescindível. No fundo, «dar-lhes as ferramentas para que possam ser capazes de fazer essa melhor gestão e terem uma boa capacidade de decisão, sempre, obviamente, sob alguma vigilância.»

Apesar de apreciar a comemoração do Dia Mundial da Criança, Fernanda gostaria que todos os direitos fossem colocados em prática pelo mundo fora. «O passar da palavra à ação parece-me cada vez mais urgente. As crianças merecem um tipo de cuidado, atenção e resguardo que, a não acontecer no seio familiar, terá de ser sancionado. A justiça deverá ser muito mais eficaz e até feroz.»

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ANA MARIA MAGALHÃES ESCRITORA
ESTIMULAR A LEITURA
Dos cinco netos, duas são raparigas, com 11 e 13 anos, e vivem nos Açores. A distância não apaga a relação próxima com a avó. Além de virem ao continente duas a três vezes por ano, falam todos os dias ao telefone e Ana Maria Magalhães envia-lhes livros. «Mantemos uma relação muito próxima.» Verdadeiramente otimista em relação a esta época, a escritora defende que as crianças têm hoje muito mais oportunidades do que os pais ou avós «alguma vez sonharam». «Esta é a melhor época da história para se ser criança. Mesmo as crianças que pertencem a famílias de fracos recursos têm à disposição uma série de ótimos desafios.» E ainda que muitas delas vivam sobrecarregadas com múltiplas atividades, é «impossível roubar-lhes tempo porque elas encarregam-se de o fazer valer».

A escritora chama a atenção para os pais que trabalham imenso «e procuram proporcionar o melhor aos filhos, mas vivem cheios de remorsos porque acham que deviam estar em casa com eles». A escritora considera que os pais não devem sentir-se mal por terem necessidade de sustentar a família. «É preferível uma hora de brincadeira ou uma refeição em comum do que estar um dia inteiro com os filhos sem qualquer atividade ou interação.»

As netas a viver nos Açores herdaram da avó o gosto pela leitura. «São leitoras compulsivas e ótimas alunas. Por mais atividades que tenham, a leitura é insubstituível.» Aos pais, recomenda que devem proporcionar «uma hora sagrada da leitura, normalmente à noite, antes de se deitarem, excelente para relaxar e para que o sono venha mais depressa». Se o seu filho gosta naturalmente de ler, o processo fica facilitado. Caso não goste, é necessário estimulá-lo para a leitura e, sobretudo, deixá-lo escolher o que quer ler. «É preciso deixar as crianças lerem o que lhes agrada, sem imposição, a menos que sejam livros nocivos.» A leitura permite conhecer outras realidades, novos contextos, transmitir conhecimentos, colocando questões que as crianças nunca tiveram. É durante a leitura que é possível dar asas à imaginação e viver autênticas aventuras. Daí o sucesso da coleção Uma Aventura, cuja autoria partilhou com Isabel Alçada.

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CARLOS MOZER, EX-JOGADOR DE FUTEBOL
COMBATER O SEDENTARISMO
As brincadeiras escolares e o desporto que praticava na infância eram diferentes daqueles que o filho mais novo (com 9 anos) experimenta. O facto de as crianças passarem grande parte do dia dentro de casa em jogos de computador ou a navegar na internet torna-se prejudicial, considera o ex-jogador de futebol. «Julgo que os pais, educadores e aqueles que detêm o pelouro do desporto devem promover atividades para que as crianças possam, de uma maneira ou de outra, fazer uso da atividade física para se exercitar, para promover a coordenação motora e o desenvolvimento muscular». O desporto promove o «combate» ao sedentarismo que as novas tecnologias facilitam. O filho mais novo seguiu-lhe as pisadas e joga futebol no Sport Lisboa e Benfica, além de praticar judo na escola. Carlos Mozer não está propriamente preocupado se ele será «um grande jogador de futebol». O objetivo é tirá-lo o mais possível de casa para praticar exercício. Até porque os desafios de hoje são muito mais «dos adultos do que propriamente das crianças», defende.

Além de todos os benefícios do desporto, destaca a importância da socialização e da partilha com os amigos. «As novas tecnologias permitem que a criança se desenvolva mentalmente, mas leva a que se torne individualista.» A criança brinca cada vez mais sozinha, sem precisar de bater à porta dos vizinhos e pedir a algum amigo para jogar futebol na rua, como Mozer fazia quando era pequeno. «Caberá aos pais promover a interação dos filhos com os amigos para que possam trabalhar em grupo.» E dentro dos gostos das crianças, claro. «Só somos eficazes naquilo que fazemos se o fizermos com gosto. Cada criança tem de se envolver nas suas atividades. Não podemos exigir que os filhos sejam ou façam o que nós queremos.»

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PEDRO STRECHT, PEDOPSIQUIATRA
CRIAR TEMPO DE QUALIDADE
«Os miúdos estão muito tempo na escola e os pais, por sua vez, em sobreatividade.» A pressão diária da sociedade acaba por ter impacto no «pouco tempo de qualidade» que se tem para ser criança», diz Pedro Strecht. «Crescer é sentido com uma sobrecarga desmesurada e uma rapidez de trajeto que vai queimando etapas.» Agarrado ao tempo vem o espaço útil necessário para a criança «estar em silêncio». Na verdade, tanto as crianças como os adultos «já não sabem o que é estar sem fazer absolutamente nada». O facto de se receber continuamente informação visual dá pouca margem para que as crianças «pensem livremente, imaginem e criem». No livro que lançou neste ano, Parentalidade Positiva (ed. Verso de Kapa ), o pedopsiquiatra descreve uma experiência em que se dedicou a contar os meninos que estavam a brincar com tablets e smartphones na sala de espera do seu consultório. «A percentagem foi significativa.» Preocupa-se sobretudo com «a exposição a conteúdos violentos e de uma sexualidade explícita desintegrada das vivências afetivas». Os jogos eletrónicos vão assim «banalizando estes temas».

O desempenho técnico e economicista está também cada vez mais presente na vida diária. «A ideia do desempenho, da perfeição, da impossibilidade da falha, do ter de ganhar, acaba por ter um efeito doentio nos miúdos, que rapidamente os coloca num papel desajustado de uma grande expetativa.» Pedro Strecht sente-se igualmente inquieto com a busca de «soluções milagrosas» consubstanciada na tendência que alguns médicos têm para «medicar muito». Considera «brutal» a taxa de crianças medicadas com psicoestimulantes, antidepressivos e ansiolíticos em Portugal, com consumos que têm disparado nos últimos anos. E alerta: «As pessoas esquecem-se de ouvir as crianças. Estão pouco no discurso do adulto e quase nada na agenda política». Na sua opinião, Portugal deveria ter um Ministério da Criança e da Família, numa altura em que o país está «a ficar sem infância uma vez que morrem muito mais pessoas do que nascem, com a natalidade a descer vertiginosamente desde 2007». Nesse sentido, o Dia da Criança é uma data de extraordinária importância para nos fazer refletir. De tal forma que o pedopsiquiatra dedica a data a duas crianças em particular, que acompanha: Luísa F.C. e Guigas R.S.