Opostos: Katia Guerreiro e Tó Ricciardi

Uma fadista, um DJ. Diferentes ritmos. Katia Guerreiro é a canção tradicional portuguesa, Tó Ricciardi bate-se pelos prazeres da música eletrónica. Não se conheciam, mas ficaram com vontade de ouvir a música um do outro.

Isto de juntar figuras públicas improváveis tem destas coisas: o embaraço de quem não se conhece. «Claro que conhecia o nome!», diz ela. «Nunca ouvi um álbum completo, mas estou farto de ouvir falar dela», diz ele. Foi a frio que Katia Guerreiro e Tó Ricciardi se conheceram, mas foi fácil quebrar o gelo. Ajudou, claro, a simpatia da fadista: «Nós, na música, não temos grandes oposições! É um modo de vida, não é só uma profissão! Claro que eu e o Tó estamos nisto por paixão e por vocação. E como há nisto uma paleta de cores imensa, acabamos por gostar de tudo neste arco-íris, ainda que com espírito crítico, obviamente. Por curiosidade ou por gosto, acabamos por nos aproximar.» Palavras de alguém que vem da Medicina. A ironia do percurso faz sorrir o DJ e produtor musical, que concorda com as palavras: «O pessoal da música dá-se todo bem.»

Era seguro que este encontro com duplo sentido não iria transformar-se num braço-de-ferro; fado versus beats eletrónicos, nada disso. A ideia era explorar uma possível rota de pontos que se tocam, uma expansão de encontro humano que comunicasse com a música de ambos. O fado não tem de embalar a house music, mas da abertura de ouvidos e quebra de preconceitos pode sair qualquer coisa. E nestes tempos em que os DJ estão cada vez mais estrelas e as novas fadistas rejeitam a epígrafe de diva, cruzamos esses lugares-comuns.

Entre o céu e a terra
Katia e Tó não são deuses mas entendem o fascínio que as suas «funções » exercem. «As pessoas, às vezes, têm uma ideia de que nós vivemos numa redoma e que tudo aquilo que nos envolve é brilhante e que somos imaculados. Quando acontece terem um contacto direto connosco percebem que não…», diz Katia. «Pois. Percebem que somos normais e desiludem-se», completa Ricciardi com uma gargalhada, para em seguida confessar: «Claro que há DJ divas! Alguns de nós chegaram a um nível que nunca pensei que pudesse acontecer, já para não falar dos valores que cobram! Duzentos mil euros por duas horas de música numa pen… Se perdem a pen é o fim do mundo! Estou a referir-me aos David Guetta da vida.» «É chocante!», espanta-se Katia.

Também nos rituais, os dois artistas têm maneiras de estar iguais. Ricciardi, antes de uma atuação fica mais descansado quando tem o seu set bem preparado: «Antigamente, quando tinha atuações maiores, obrigava-me a meditar um bocadinho, sobretudo quando tinha 40 mil pessoas à espera, como aconteceu na abertura da Expo’98. Agora, o meu truque é estar tranquilo.» Katia também acredita que ambos têm de saber preparar-se consoante o tipo de público: «E é também em cima do palco que percebemos qual deve ser o nosso tipo de comunicação. Ainda no outro dia, num concerto no Algarve, o público induziu-nos a uma tal boa disposição que até eu e os meus músicos chamámos àquilo de bandalheira!»

Se Tó Ricciardi não é nem nunca foi do fado, há uma conexão que muitos vão logo lembrar: Amália Rodrigues viveu com Eduardo Ricciardi. A rir-se vai dizendo: «Lá em casa, encontrei o fado apenas porque a Amália viveu com o meu tio.»

Não há cá misturas
Numa coisa ambos estão de acordo: DJ a remisturar fado talvez não seja boa ideia. Cada arte no seu galho. Só a ideia de «chill out fado» assusta Ricciardi: «O que tenho ouvido de intervenções eletrónicas no fado não têm sido coisas muito felizes.» Katia diz-se mais aberta a fusões e lembra que já fez uma colaboração com o projeto Noidz, neste caso uma versão a atirar ao modernaço de Estranha Forma de Vida.

A fadista lembra-se das «bocas» que manda quando ouve um DJ dizer que vai «tocar». «Pois, não faz sentido nenhum… Está bem, vai tocar no botão play!», diz a rir-se Ricciardi. Mas é Katia quem assume que no passado não dava tanto crédito aos DJ e que, mais nova, se lembra da alcunha da dance music, «martelinhos»: «Às tantas é que percebi que vocês têm um trabalho quase de laboratório e de criação em termos de pesquisa e de reunião de ritmos. Ser DJ passa muito por um cruzamento de sons e até de géneros que pode ser mito interessante. Isso enriquece muito, não é?» Ricciardi concede com um surpreendido acenar de cabeça.

No fim, Katia confessa estar roída de vontade de um dia fazer uma visita ao clube de Ricciardi, o Station, o poiso mais permanente do DJ. Por seu turno, ele recebeu logo da agente de Katia o seu último CD e confessou ter ficado com vontade de ir ver um concerto da fadista. Só não lhe peçam para um dia produzir um disco de fado: «Isso não sei. A única coisa que é possível é um dia colocar um sampler de fado num tema que esteja a passar.»

KATIA GUERREIRO
Um das mais aclamadas vozes do fado nacional, Katia formou-se em Medicina e apostou numa carreira que chegou também aos palcos internacionais. O seu último álbum, Até ao Fim, foi editado no ano passado.

TÓ RICCIARDI
Um dos nomes grandes dos DJ em Portugal ficou conhecido também como produtor musical na sua editora Nylon. É o proprietário do estúdio Som de Lisboa e do restaurante-discoteca Station. Já remisturou nomes como Tosca e Madredeus.

QUE ESTÃO A FAZER
Kátia Guerreiro De partida para uma longa digressão que a levará à Suíça, à França e ao Canadá, está nomeada para o Prémio Luces del Auditorio, correspondente ao melhor concerto do ano no México.

Tó Ricciardi No Station, o seu clube em Lisboa, todos os meses o DJ convida grandes nomes internacionais para sessões intimistas. Depois de em novembro ter sido Dorfmeister o convidado, no dia 5 de dezembro é a vez de Tiefschwarz.