O teatro que veio do campo

Há quarenta anos que a companhia Trigo Limpo teatro ACERT, de Tondela, leva cultura de qualidade ao interior do país (são os mais antigos a fazê-lo). Sobre eles, o escritor José Eduardo Agualusa disse que pegam nos textos e os melhoram a tal ponto que passam a ter um sentido que os próprios autores não sabiam que existia.

Neste mês em digressão pela Beira Interior com A Viagem do Elefante, espetáculo de rua baseado no texto do nobel português, em coprodução musical com Flor de Jara (Espanha) e parceria com a Fundação José Saramago, interioridade e descentralização são substantivos que assentam na perfeição à mais antiga companhia teatral profissional com residência fora dos grandes centros. Corria o ano de 1976 e a terras de besteiros «não chegavam nem as sombras dos ecos da liberdade. Existia na região uma forte fidelidade ao passado, curiosamente maior do que no vizinho concelho de Santa Comba Dão, terra de Salazar», diz José Rui Martins (Zé Rui, como é carinhosamente tratado), diretor artístico da companhia Trigo Limpo teatro ACERT, e um dos elementos que estiveram desde a primeira hora ligados ao projeto.

Inquietos e ansiosos por provarem o gosto da liberdade, um grupo de jovens uniu-se com o objetivo de viver o 25 de Abril através da militância cultural. Encontraram no teatro, pela particularidade da comunicação, e na música, pela força das palavras das canções da época, a fórmula para se fazerem ouvir.

Molelos, terra de oleiros e de operários, cedeu a estes jovens um espaço de cinco por oito metros que se tornou grandioso pelo que ali era falado, pensado e posto em prática. O teatro surgiu desde logo, concertos, exposições e muita hostilização. Alguns tiveram de escolher: ou o trabalho ou o grupo, já que se lhes tinha colado à pele o rótulo de «comunistas e revolucionários». Ficaram os que à época puderam resistir, os que trabalhavam nas obras e os que se sujeitaram a fazer de tudo, como Zé Rui, que chegou a andar a vender queijos da serra e que foi relojoeiro.

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Não havia líderes. Pensavam, partilhavam, criavam em conjunto. Uma matriz de trabalho comunitário e artístico assente no associativismo, nas vivências, utopias e resistências coletivas que se mantém até hoje e da qual dizem não querer abdicar. A companhia tem 14 profissionais, mas muitos mais associados não remunerados que fazem parte do todo em que se transformou o grupo, hoje muito mais do que uma companhia de teatro. A ACERT Associação Cultural e Recreativa de Tondela tem várias valências ligadas a outros projetos culturais e desportivos. Para espetáculos pontuais são ainda contratados outros atores, músicos e técnicos.

Zé Rui vê a ACERT como «o milagre do coletivo, que só por isso sobrevive». O ator e diretor artístico, além de homem de sete ofícios, como todos os outros elementos, uma vez que tratam de cenários, montagens, gestão e de tudo mais que for necessário, teve de rumar a outras paragens para fazer formação e participar em projetos diferentes, incluindo televisão, mas tudo sempre temporário: «A minha ansiedade nunca foi outra senão a de estar aqui.»

Em 1979, ainda num espaço de três metros por oito, já em Tondela, constituíram legalmente a associação, mas só dez anos depois foi possível tornar a companhia profissional. O elenco vivia com intensidade o projeto e até essa data já tinham feito subir ao palco mais de vinte produções. Desdobravam-se entre empregos mais banais ou o trabalho em outras companhias nacionais. Era o caso de Pompeu José, que apesar de ser natural de Setúbal e de ter integrado os elencos da Barraca, d’O Bando, da Comuna e da Bonifrates, quando conheceu a ACERT identificou-se logo com o projeto. «Nas companhias sediadas nos grandes centros faltava o sentido comunitário do trabalho artístico e da forma de trabalhar para e com o público», diz. Em 1987 participou no primeiro espetáculo e cinco anos depois passou a viver em Tondela, onde casou e foi pai. Foi sempre participando em filmes, séries e telenovelas, porque a companhia é profissional, mas o dinheiro não abunda.

O primeiro apoio da Secretaria de Estado da Cultura só chegou quatro anos depois do início da profissionalização, em 1993, quando já ocupavam o antigo hospital da cidade. Em 1995, já com o atual elenco, saíram para o edifício do antigo ciclo preparatório. Um novo espaço, um novo ciclo e um nome renovado, Novo Ciclo ACERT. Um espaço que foi sendo remodelado ao longo dos anos e que hoje dispõe de um auditório interior e de outro ao ar livre, um jardim e um café onde são apresentados diversos espetáculos, e salas atribuídas às diferentes secções da associação. As residências artísticas de outras companhias são por ali também uma constante, tudo porque a associação, pela sua distância e interioridade, foi-se apetrechando de equipamentos de que a maior parte não dispõe.

O apoio da autarquia de Tondela é fundamental e pesem os tempos difíceis que viveram em 2011, com os cortes do Estado, a companhia, que já chegou a ter orçamentos de mais de um milhão e meio de euros, reorganizou-se e só 37 por cento do seu orçamento está dependente de subsídios públicos, que dizem aplicar em serviço público cedendo as instalações a parceiros da terra, fomentando o desporto, a formação artística. A verba que completa o orçamento é fruto de muito trabalho e obtida através do mecenato, da venda dos espetáculos e das bilheteiras.

Mais de cem produções em 39 anos de trabalho, outros tantos espetáculos pontuais, eventos de referência nacional como a Queima do Judas, um grandioso espetáculo de sátira social e de pirotecnia (em que Pompeu José é especialista), e o Tom de Festa, que neste ano teve a sua 25.ª edição, que levam milhares de pessoas a Tondela, cidade que tem um índice muito elevado de estreias de espetáculos.

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A itinerância é outra das facetas da ACERT, que percorre o país e o estrangeiro, sobretudo Brasil, Moçambique e Angola, com grandes produções, a última das quais A Viagem do Elefante, adaptação da obra de José Saramago, há três anos em digressão e em que grande parte do elenco é constituído por gentes de cada terra onde é exibido.

A grandiosidade dos espetáculos e dos elementos que deles fazem parte são uma imagem de marca da companhia que começou com a Máquina de Peregrinar construída para a Expo’98, hoje instalada numa das rotundas de Tondela. «O agigantar das figuras talvez seja para nós este orgulho de mostrar que somos tão bons ou melhores do que os outros», diz Pompeu José.

Além de Saramago, outros grandes escritores já viram obras suas adaptadas pela ACERT, que segundo Pompeu José, que partilha a direção artística com Zé Rui, gostam de textos livres, mais do que as peças teatrais tradicionais. «Já adaptámos clássicos, sempre com arranjos arrojados a reinventar a própria história mais ao nível dos sonhos. Mas do que gostamos realmente é da liberdade dos textos que não são escritos a pensar no teatro, ou então passarmos apenas uma ideia aos escritores e eles trabalham a linguagem livremente.» Como fizeram o angolano José Eduardo Agualusa e o moçambicano Mia Couto, que, há uns anos, a quatro mãos, escreveram o texto Chovem Amores na Rua do Matador, inserido no projeto Interiores.

Mais recentemente, Hélia Correia também aceitou o desafio. Assim como Gonçalo M. Tavares, que tem pela companhia um particular apreço. «Os atores da  ACERT são pessoas que querem continuar a usar o teatro como espaço de paragem e de escavação – escavar, tornar mais claro, trazer à superfície o que está escondido. É isso que eles fazem. Bem longe, pois, do entretenimento descuidado», diz o escritor. E o autor de Jerusalém acrescenta: «Respeitam a literatura como deve ser respeitada: não com curvar de costas e salamaleques, mas com trabalho dramatúrgico e entusiasmo de grande qualidade. E talvez isto seja uma síntese: o que eles têm não é um entusiasmo qualquer, é um entusiasmo de grande qualidade, um entusiasmo que avança e faz, quer seja no espaço fechado quer seja no espaço público, nas praças e ruas. Um entusiasmo que acerta no alvo, eis o que é tão difícil de conciliar (entusiasmo e precisão) e, depois, difícil manter ao longo do tempo. Eis o que a ACERT consegue.»

Pompeu José e Zé Rui reconhecem que não é fácil manter uma companhia profissional desta dimensão no Interior, sobretudo porque não cedem a interesses políticos ou comerciais e porque querem ser os melhores. A sua arma secreta é o público. Um público que assiste a cada espetáculo como «o acontecimento», e que quando sai de Tondela vai assistir a outros espetáculos, e que faz que hoje a percentagem de jovens que, com a aprovação da família, optam por frequentar cursos ligados às artes, seja mais elevada naquela cidade do que em qualquer outra região do Interior do país. Um público que quando Tondela subiu este ano à primeira divisão lhes disse carinhosamente: «Agora temos duas equipas na Primeira Liga.