O que os animais nos ensinam

Cuida de cachorros, ovelhas ou até de ratazanas com igual dedicação. Há muito que a vida dela dava um livro e foi assim que nasceu Quando os Animais Vão ao Médico, com as histórias caricatas de uma veterinária ao serviço de mascotes e amigos humanos, sem distinções de raça.

QUEM É CÉLIA PALMA?
Formada em Medicina Veterinária pela Universidade Técnica de Lisboa em 1993. A par da clínica, começou a trabalhar no ano seguinte na Liga Portuguesa dos Direitos do Animal, na área de medicina e cirurgia de animais de companhia. Mãe de duas filhas, tem quatro gatos, um cão, uma cabra-anã e três tartarugas. Quando os Animais Vão ao Médico [ed. A Esfera dos Livros] é o primeiro livro.

Aos 9 anos decidiu que seria veterinária e não mudou de ideias, ao contrário do que sucede com a maioria das crianças. Como soube que era isto e mais nada?
Eu sempre gostei mesmo muito de animais. Era daquelas crianças que imploram para ter cão e gato. E quando o meu segundo gato, o Tareco, entrou um dia em casa a salivar e cheio de convulsões graves, envenenado por uma vizinha que queria acabar com os ratos no jardim e deixou lá um naco de carne, decidi que seria veterinária para salvar outros animais de terem uma morte dolorosa e prolongada como aquela, em que me senti completamente impotente. Claro que os animais continuam a morrer, infelizmente. A vida é mesmo assim.

Ser veterinário não é só tratar cães e gatos. É saber tratar também os donos…
Uma parte muito grande do nosso trabalho passa por sermos psicólogos, sem dúvida. Atualmente o curso já prevê a comunicação entre pessoas, mas no meu tempo era uma vertente que falhava: não nos preparavam para lidarmos com os donos, que muitas vezes vêm ter connosco assustados, nervosos, desconfiados das nossas intervenções ou mesmo convencidos de que sabem mais do que nós. Quando quis ser veterinária, achava que ia tratar de animais e ponto final. Nunca pensei na parte humana envolvida, muito menos que seria essa a mais difícil de todas. A verdade é que as pessoas são complicadas. Não há duas iguais, os relacionamentos são surpreendentes e nem sempre fáceis… Tive de aprender a relevar muita coisa com a experiência, mas acho que me desenrasco bem.

Gostar de animais é condição para se ser bom veterinário?
Não necessariamente. Acredito que se pode ser um bom veterinário sem se gostar, desde que se seja bom profissional. Da mesma forma que quem gosta de animais tem de saber manter o distanciamento necessário para fazer um trabalho o melhor possível, sem comprometer os interesses do animal, o bem-estar de ambos e a sua própria capacidade de tomar decisões. Mais uma vez, aprende-se com o tempo a lidar com este stress profissional e com a dor.

Fez um luto de negro e flores quando o seu primeiro gato morreu. Agora, não só assiste à morte de outros animais como tem, por vezes, de lhes abreviar a vida. É difícil gerir esta dualidade de sentimentos?
Tinha 5 anos quando perdi esse gato, sofri imenso. Hoje continua a ser complicado tomar a decisão de eutanasiar, embora haja situações em que nos traz algum alívio poder fazê-lo: quando o sofrimento é tanto e não vemos qualquer retorno, sabe-nos bem dar descanso àquele animal em particular, àquele dono que sofre com ele. Dispor dos conhecimentos médicos e do acesso às substâncias certas é bom nesse sentido. Claro que depois é inevitável pensar se estamos a fazer o correto, se temos efetivamente o direito de escolher assim. Nunca é fácil optar pela eutanásia. Mas aí temos de confiar um bocadinho na nossa avaliação de que estamos a proceder da melhor maneira. Espero nunca me arrepender.

O que acontece quando os animais se tornam mais do que pacientes?
Agir torna-se ainda mais complicado a todos os níveis, razão por que temos mesmo de aprender a manter o tal distanciamento. A gerir as emoções, por muito que nos toque. Lembro-me de uma colega que chorava mais do que os donos quando tinha de tomar uma decisão destas e isso não pode acontecer. Os donos precisam de alguém forte a seu lado, que os apoie nesse momento de tristeza e lhes diga que estão a fazer o que é certo. Não devem sentir-se piores do que já se sentem por perderem os seus animais. A fadiga da compaixão é uma das principais consequências de se ter vidas a depender de nós.

Por outro lado protagoniza situações divertidas, como a operação ao furão que lhe empestou o consultório por vários dias, ou o dono que lhe pediu para ser destartarizado depois de ter feito o mesmo à cadela. É um saldo positivo, feitas as contas?
Muito positivo. Há sempre uma lição a aprender, mesmo nas situações mais graves ou absurdas. E eu tenho muita fé no ser humano, apesar de haver donos – familiares e amigos também, confesso – que me pedem de tudo por acharem que posso ajudá-los sendo veterinária. Fazem questão de mostrar-me todos os exames complementares, mazelas e orifícios, a ver se lhes dou uma achega. Digo-lhes sempre que não me meto nisso, ser médica de animais não é o mesmo que ser médica de pessoas. Cada um na sua função para não dar asneira.

Qual o caso mais difícil que teve até à data?
Já são muitos anos e muitos casos, mas difícil a sério foi o de uma cadelinha de 2 anos que ficou gravemente doente sem se saber porquê. A cadela foi referenciada por uma colega – costumamos pedir ajuda uns aos outros quando não estamos a ser capazes de deslindar um caso –, esteve internada várias vezes e nunca se conseguiu chegar a um diagnóstico. O quadro era grave e ninguém percebia a razão: nenhuma análise dava nada, nenhuma punção, nenhuma biopsia. Entretanto, já em estado crítico, a senhora resolveu tirá-la do hospital onde estava internada e trazê-la a mim (tinha sido sempre eu a veterinária assistente) para lhe fazer a eutanásia. Nesse momento, não lhe sei dizer porquê, falei com a dona e disse-lhe que íamos deixar a morte assistida para o dia seguinte.

Foi um feeling de veterinário, dar-lhe esse tempo extra? Uma espécie de sexto sentido?
Não sei como chamar a isto. Às vezes acontece. O facto é que ela melhorou, ficou boa ao fim de uns três ou quatro meses de desespero em que esteve a morrer, e até hoje não sabemos o que lhe aconteceu. Da mesma forma que ficou doente sem fazermos ideia do motivo, recuperou. Passados dois anos, em que nos mantivemos sempre na expectativa e com os cérebros ocupados no caso, a cadelinha voltou a ter exatamente os mesmos sintomas e acabámos por ter de eutanasiá-la. Já estava em estado terminal e irrecuperável, não podíamos fazer nada para salvá-la.

NM1210_Vida01

Qual foi o animal mais incomum que lhe passou pelas mãos?
Talvez uma raposinha vinda do aeródromo de Tires, em estado crítico e aparentando ter parvovirose, apesar de a doença só aparecer nos cães. Dois funcionários encontraram-na inanimada na pista de aterragem e trouxeram-ma, semicomatosa, com diarreia, a cheirar terrivelmente. A raposa é semelhante a um cão em termos fisiológicos, de medicação e tratamento, mas não deixa de ser um animal selvagem: só pudemos cuidar bem daquela porque estava moribunda. Assim que começou a melhorar, tornou-se quase impossível fazer fosse o que fosse. Era agressiva e independente, mesmo sendo muito bebé. Se fosse adulta seria impossível, tentava morder-nos sempre que precisávamos de lhe mexer – uma luta! No final, recuperámo-la e voltou para Tires. Foi à vida dela.

Também teve um bode a fazer parte do seu agregado familiar. A mim, parece-me tão invulgar quanto a raposa…
Esse bode marcou-me, de facto. Tive-o até bem velhinho. As cabras são muito inteligentes, apesar de destrutivas por mastigarem tudo o que apanham a jeito, e o bode era especial, cheio de personalidade, com cerca de oitenta quilos e uma propensão especial para o disparate. Foi para nossa casa ainda bebé, com a missão de tanto ele como a cabra fazerem a limpeza do terreno (na altura morávamos numa pequena quinta). Mais tarde, quando vieram as filhas e nos mudámos para uma casa mais espaçosa, embora com um terreno menor, compensávamo-los com passeios pelo campo ao redor da casa nova, à trela como se fossem cães. Os vizinhos achavam sempre muita piada a essas saídas pouco convencionais.

Tais animais tais donos?
Não diria que em cem por cento das vezes, mas em noventa confirma-se. Então a nível comportamental é inevitável: todos acabam por mimetizar grande parte das atitudes dos donos, sobretudo quando adotados em pequenos. Se são pessoas demasiado ansiosas, o cão é demasiado ansioso; se são hiperativas, os cães são-no também; donos mais zen têm cães zen; os mais obesos têm animais obesos e fazem questão nisso, por acharem que um animal magrinho não é saudável. Os cães conseguem inclusivamente ler-nos a expressão facial em resultado dessa adaptação: podemos não dizer nada e eles sabem o que estamos a pensar, se estamos zangados e lhes vamos dar um ralhete, se estamos contentes e vamos brincar. Por isso é que às vezes as pessoas dizem: «Eu vou dar-lhe banho e ele já está escondido não sei onde! Mas como é que adivinhou?» São ótimos leitores de rostos.

E o que é que lhe diz do dono o facto de ter levado uma ratazana atropelada numa caixa de sapatos, aninhada num cobertor?
Todos os animais merecem compaixão e aquele rapaz revelou respeitá-los em igual medida ao trazer-ma, com uma fratura ao nível cervical que ia deixá-la paralisada da cabeça para baixo, mas obstinado na sua missão de ajudá-la. E foi: fiz-lhe medicação para a dor e mantive a ratazana num semicoma induzido, até que acabou por morrer sem sofrimento umas horas depois. Qualquer outra pessoa teria ignorado o bicho.

O que é que os animais nos ensinam?
A compaixão, o altruísmo, tanta coisa. Eu não sou daquelas pessoas que afirmam acreditar mais nos animais do que no ser humano: continuo a ter muita fé no ser humano, com a sua riqueza e diversidade de atitudes. Mas a verdade é que os animais nos dão tudo sem esperarem nada em troca e nós, mal ou bem, queremos sempre um retorno qualquer. Quem tem um cão ou um gato em casa – embora os gatos sejam um bocadinho diferentes na sua mostra de afeto – sabe perfeitamente a festa que nos fazem quando abrimos a porta. Podemos ter gritado, ralhado, ignorado, estado uns meses fora e, no entanto, somos sempre bem recebidos. Ensinam-nos tudo, eles.