O que é que os D.A.M.A. têm?

São três rapazes bem-comportados e arrastam multidões. Estão há mais de quarenta semanas no top 10, são disco de platina e neste ano têm 170 concertos agendados. Atuam nos grandes palcos, nas festas da santa terrinha e nesta semana vão estar no Festival Sudoeste. Assim é o verão na estrada. Assim são os D.A.M.A.

A gritaria começou muito antes do soundcheck. Ainda nenhum músico tinha subido ao palco e já uma fila de adolescentes se encostava às baias do recinto da feira de Cantanhede. Eram quase só miúdas, adolescentes, alunas do secundário. Estavam de férias e não lhes faltou tempo de preparação para o concerto – pintaram cartazes e recortaram letras em papel de lustro dourado a pedir camisolas e abraços, a declarar amor a cada um dos artistas. Aplaudiram os técnicos que preparavam luz e som para a noite. Com a chegada da banda de apoio, a excitação aumentou, palavras de ordem, aplausos, os refrãos das canções entoados em uníssono. E depois a explosão. Francisco Pereira, Miguel Coimbra e Miguel Cristovinho entraram para afinar as vozes ao microfone, não estiveram mais de dez minutos em cima do palco. Mas a pequena multidão, que crescia como uma onda num maremoto, começou a desdobrar-se em gritos agudos, algumas lágrimas, uma histeria só possível em garotas daquela idade. Faltavam quatro horas para o espetáculo começar.

Os D.A.M.A. são um fenómeno musical em Portugal. Vendem que se fartam, dão concertos em todo o lado, têm uma legião de público fiel, crescente e cada vez mais transversal. Se é verdade que o núcleo duro é composto por um público feminino e jovem, também é justo dizer que os concertos estão cheios de crianças, universitários e adultos – provavelmente os pais desta gente toda. «A coisa única que eles têm é a aura de heróis do liceu», diz Joaquim Fonseca, manager do grupo. «Podem não ser os melhores músicos do mundo, podem não ser os melhores cantores do mundo, mas compõem algo que é absolutamente genuíno, direto e simples – e que responde aos dramas e problemas de uma geração.»

À primeira vista parecem uma boy band, mas não é bem isso. Os D.A.M.A. estão num segmento que mistura uma lírica poética – um pouco ao estilo dos Toranja ou dos Azeitonas –, com um hip hop mais melódico, menos poluído do que o habitual. Música bem-disposta, fácil de entrar no ouvido. As letras fazem a atualização juvenil do romantismo, são as baladas perfeitas para ouvir numa curte às escondidas, atrás do gimnodesportivo da escola. «Podemos chamar ao que fazemos pop rap, mas não é um conceito simples, porque também somos capazes de nos aventurar pelo rock», diz Miguel Cristovinho, 24 anos, o frontman do trio. «E não complicamos demasiado. O que cantamos é o que somos, sem grandes artifícios.» A ideia há de ser repetida pelos outros dois vocalistas, e é visível para quem assistir a um concerto deles e os conhecer um bocadinho. Os D.A.M.A. são uma ideia direta: uns betinhos que não têm vergonha de ser betinhos. Que se assumem como miúdos bem-comportados e nem por isso deixam de ser cool.

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Francisco Pereira tem 26 anos e é conhecido por Kasha, Miguel Cristovinho tem 24. Miguel Coimbra tem 25. Eis os D.A.M.A.

LANÇARAM EM OUTUBRO DO ANO PASSADO o álbum de estreia, Uma Questão de Princípio, e estão há 41 semanas seguidas no top 10 em Portugal – um terço delas no primeiro posto. São disco de platina desde abril e têm uma agenda de concertos que dá cabo de qualquer concorrência. Neste ano são 170 datas, com a gravação de um álbum pelo meio, que sairá em outubro. Estes rapazes, em boa verdade, fartam-se de trabalhar. Em média fazem uma atuação dia sim dia não, em festas de paróquia para 700 pessoas ou em estádios cheios com 50 mil. Percorrem todo o país e em todo o lado são recebidos num ambiente eufórico. Nesta quinta-feira vão subir ao palco principal do Sudoeste, na Zambujeira do Mar.

Mas os D.A.M.A. são rapazes da sua geração e, se já são um fenómeno nos circuitos normais, é nas redes sociais que mais partem a loiça. O canal de vídeos que assinam no YouTube tem 30 milhões de visualizações. Têm 160 mil seguidores no Facebook e qualquer post angaria milhares de gostos em poucos minutos. O mesmo acontece no Instagram e no Twitter. Há dias, numa viagem para Pombal, Miguel Coimbra ia tirando fotografias e colocando-as no SnapChat, uma aplicação em que se podem colocar imagens e vídeos e deixá-los no ar durante uns breves segundos. «Temos imensos seguidores que tentam fazer uma captura de ecrã de algo que colocámos em linha durante três segundos. Depois colocam isso nas páginas de fãs», diz. Coimbra, tal como os outros membros do grupo, passa uma grande parte do dia agarrado ao smartphone. Ficar sem bateria é, aliás, todo um drama. Sinal dos tempos: o culto dos D.A.M.A. é alimentado por telemóvel.

Deixa-me Aclarar-te a Mente, Amigo. É isso que significam as iniciais que dão o nome à banda. «Inventámos isto quando formámos a banda, tínhamos 15 ou 16 anos», diz Francisco, agora com 26. «Nessa altura os nossos amigos não acreditavam que algum dia poderíamos ter sucesso, mas a verdade é que chegámos aqui. Com muito trabalho e sempre com boa onda. A construir.» Então é melhor ir para a estrada. No alcatrão não há artifícios, são demasiadas horas de caminho para disfarçar estratégias. Isso, os testes de som, os quartos de hotel, os autógrafos, as subidas para o palco, aquele riff de guitarra que falhou, uma entrada que não correu bem. Não há melhor forma de perceber quem são os D.A.M.A. E, afinal, o que é que eles têm.

Os dias são passados numa carrinha, mas a metáfora é ferroviária. «Neste último ano entrámos numa correria incrível. É como se viajássemos num comboio de alta-velocidade. Sabemos para onde vamos mas a paisagem que vemos nas janelas está desfocada.» Cristovinho segue ao lado de Coimbra, e atrás deles vai Francisco. Ao volante o manager, atrás vão Francesco Meoli e Guilherme Silva, teclista e baterista. O resto do grupo – dois guitarristas, um baixo e cinco técnicos – largou mais cedo de Lisboa, o palco já estará montado quando os rapazes chegarem a Cantanhede.

Trinta mil pessoas hão de assistir nessa noite ao concerto dos D.A.M.A. no palco da Expofacic, feira agrícola, industrial e comercial do município, que ao longo de uma semana apresenta um cartaz eclético, com Buraka Som Sistema, Xutos & Pontapés, Anselmo Ralph, Tony Carreira, Mariza ou os britânicos James. Eles ficam encarregues da abertura da festa e, antes de entrar em palco, Miguel Coimbra há de dizer: «Há dois dias que não dávamos um concerto, já sentia a falta disto.»

Tinham saído de Lisboa ao início da tarde, o ponto de encontro habitual para todas as bandas que viajam pelo país – o Bairro da Encarnação, onde não há parquímetros e por isso os carros podem ficar estacionados vários dias. «‘Bora lá», grita Joaquim Fonseca, e os rituais da estrada todos afinados. Portáteis e tablets a postos, junto com os telemóveis e os headphones. Há várias almofadas de viagem, é inevitável que alguém adormeça pelo caminho. Gui, o baterista, faz as honras à sonolência e Coimbra começa a fotografá-lo. «No final da tour vamos fazer um vídeo com imagens de toda a gente a dormir. Temos fotos de todos.» Dias depois, a caminho do Algarve, até os jornalistas hão de ser apanhados desprevenidos.

Sempre que rumam a norte, há paragem obrigatória na estação de serviço de Leiria. «É uma questão de superstição», diz Cristovinho. «A única vez que não parámos o concerto correu mal.» Assim que chegam há burburinho junto à caixa de pré-pagamento. E depois acontece uma coisa que se repetirá ao longo de todos os dias da digressão, seja manhã, tarde ou noite. «Desculpem, podem tirar uma fotografia com a minha filha? Ela é vossa fã e tem vergonha de pedir», diz uma mulher, convocando a prole adolescente para o enquadramento do telemóvel. Francisco faz de relações-públicas, começa a brincar e diz que não. Mas depois abraça a miúda e ainda convoca a mãe para a sessão. Apesar de os pedidos de autógrafos e fotografias serem constantes, o rapaz mantém-se afável – e isso não pode ser nada menos que espontâneo.

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O TRIO TEM PAPÉIS DEFINIDOS, cada um acaba por ocupar o seu lugar. Seja na criação musical ou nas relações da banda com o exterior. Cristovinho é a imagem de marca, o rosto dos D.A.M.A. Não é que os outros ocupem um papel menor, é que ele é normalmente o primeiro a dar a cara, a responder às perguntas, a ocupar o centro do palco. Coimbra é o organizador do grupo, o homem que estabelece a agenda de prioridades, que pensa no caminho a seguir. E Francisco acaba por ser a reserva moral do trio, o tipo que recorda aos D.A.M.A. o patamar a que chegaram, naqueles dias difíceis em que o cansaço dificulta o deslumbramento.

À chegada a Cantanhede não há tempo para muito mais do que o soundcheck, um jantar apressado e logo a seguir o concerto. As adolescentes que se tinham reunido aos gritos no teste de som já não são só adolescentes, à noite há uma multidão de todas as idades de braços no ar para receber os rapazes. No fim daquilo tudo, ainda terão de passar umas boas horas a dar autógrafos, tirar fotografias com fãs, com as famílias das fãs, com gente que não os conhecia mas gostou da energia que despejaram no palco. Antes de entrarem em cena, juntam o grupo todo e lançam um grito de guerra: «C’est le dame, boys», mistura de inglês e francês a dizer que são os D.A.M.A., rapazes. E, pronto, lá vão eles.

Cristovinho entrou para os D.A.M.A. há três anos, Coimbra e Francisco – que é tratado por Kasha – podem orgulhar-se do estatuto de fundadores. A alcunha tem duas explicações: é o diminutivo do apelido Cachucho e a versão estilizada de «caixa de óculos», como meio mundo o tratava na infância. Os dois rapazes frequentaram o mesmo colégio, o São João de Brito, em Lisboa. Pertenceram à mesma turma do 5.º ao 9.º ano e sempre tiveram gostos musicais semelhantes. «Tínhamos o hábito de escrever as composições de Português em verso e foi um bocado assim que as coisas começaram», conta Miguel. Na viragem do milénio toda a gente ouvia hip hop e eles começaram a criar o deles. Às vezes, antes de subirem ao palco, vão atirando falas uns para os outros, para descontrair.

A comitiva está animada, a viagem que se segue é para Pombal e isso significa duas coisas preciosas: não são mais de 45 minutos de viagem, o que permite algum repouso, e os rapazes podem ir almoçar ao restaurante favorito. «Quando a tua vida é a estrada, uma boa refeição é um prazer valioso», diria Kasha daí por uns minutos. Sílvio Ramos, o dono d’O Pote, recebe-os com um abraço. Traz para a mesa toda uma homenagem ao leitão – empadas, chamuças, pastéis e o dito, assado em forno de lenha. Nas paredes há fotografias do trio, duas, bem como de uma mão-cheia de celebridades que ali foram desaguar.

Depois do almoço é tempo de composição. Os D.A.M.A. estão a gravar novo álbum, com quatro produtores diferentes, em geografias distintas. Aproveitam o final dos concertos para se enfiarem no estúdio, se for preciso passam 12 horas a acertar cantigas. Entre os quilómetros da estrada vão ensaiando versões e, na lógica da banda, Coimbra e Cristovinho agarram-se mais aos arranjos e à melodia, enquanto Kasha propõe as letras. Isso é só o ponto de partida, que depois a conversa decorre a três. Coimbra, que estudou Produção Musical em Los Angeles, é um perfecionista e os outros seguem-lhe o passo. Nesta caravana não há tempos mortos.

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São meninos de boas famílias e são rapazes educados. Cristovinho e Coimbra conheceram-se na faculdade, estudaram Gestão. Francisco tirou Direito. «E depois largámos tudo porque era mesmo isto que queríamos fazer», concordam os três. Miguel Cristovinho trabalhava numa multinacional de cosmética, entrou num mestrado na Católica e deixou cair a oportunidade. Coimbra trabalhou na China, ia continuar os estudos em São Francisco, já não foi. Kasha nunca chegou a fazer o exame da Ordem. «O que nos mantém de pés agarrados ao chão», diz um deles, «é que nos esforçámos imenso para aqui chegar e sabemos bem o que custa seguir um sonho. Se abdicámos de tanta coisa é porque queremos mesmo estar aqui.»

A iniciativa sempre foi deles. Há três anos contactaram Joaquim Fonseca, um dos responsáveis musicais da Glam, que faz agenciamento de artistas, e conseguiram convencê-lo a assinar com eles com apenas duas canções: Luísa e A Balada do Desajeitado. Também foram eles a autoproporem-se para ir ao Sudoeste em 2013, onde atuaram num palco secundário mas conseguiram convencer o público e os promotores. Da mesma maneira, a Sony acertou contrato ainda antes de os rapazes terem repertório digno desse nome. «Havia qualquer coisa neles, na maneira como entusiasmavam a multidão. Vi um vídeo de um concerto deles no YouTube e percebi que criavam uma adesão brutal no público», diz o manager. «E com o tempo percebi que eram miúdos trabalhadores, sem peneiras, que queriam mesmo fazer isto. Só isso explica o sucesso que estão a ter.» O Ministério da Economia percebeu o potencial do trio. «Contactaram-nos há dias porque nos querem nomear embaixadores do empreendedorismo», revela Cristovinho, sorriso rasgado.

Nessa noite, nas festas do Bodo, em Pombal, cinco mil pessoas hão de aplaudi-los até à exaustão. E, no meio de miúdas em lágrimas, aparece o cozinheiro Sílvio, que os convida para um almoço de peixe grelhado. «Temos de ir para Portimão, mas caraças, embora lá.» O manager acede, vai dobrar o cansaço mas os rapazes têm direito a um mimo – se é ali que gostam de comer, seja. «Na estrada, isto é o mais parecido que temos com a ideia de casa», dirá Coimbra no fim da refeição. E então, quando se fazem ao caminho para o Algarve, os três rapazes põem-se a contabilizar o sucesso da incursão e, apesar de terem menos público do que em Cantanhede, apesar de não terem uma legião fanática como a que iriam receber mais tarde no Sul do país, proferem no tom mais satisfeito do mundo: «Fogo, desta vez foi espetacular.»

OS MÚSICOS QUE TOCAM COM OS D.A.M.A. vêm de outras escolas, não é aquela batida pop que lhes corre no sangue. Há pessoal com formação clássica e outros que vêm do jazz. Rui Rodrigues e Pedro Castro, os guitarristas, já tocaram com outras bandas, do fado ao rock. João Almeida, que se agarra todas as noites ao baixo e até canta uma música nos concertos, é um estudioso da música, tanto aprecia o jazz de uma big band como a liberdade de uma jam session. Meoli, que até foi um dos fundadores do grupo mas preferiu ficar como teclista de apoio, é capaz de passar horas a falar apaixonadamente sobre Beethoven. E Gui, como qualquer baterista, é homem de rockalhada dura. Mas o facto inegável é que, por mais afastado que o som esteja do seu gosto pessoal, estes tipos gostam de estar aqui.

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«Queremos que o pessoal que trabalha connosco sinta que somos uma família», explica Kasha, e, ainda que seja uma frase batida, a filosofia é real. Mesmo com os técnicos de luz e som há uma promoção constante da fraternidade. «Não aumentámos os nossos salários mas aumentámos os deles», revelarão Coimbra e Cristovinho, «porque não queremos mau sangue no grupo. Valorizar o nosso pessoal, é isso que queremos.» E, sem eles ouvirem, quem os apoia há de retorquir que estão lá, sem ponta de inveja, para fazer três rapazes brilhar. Há um equilíbrio qualquer nisto que se construiu nas piadas da estrada, num ou noutro copo de fim de noite no hotel, numa jantarada a trocar galhardetes.

À chegada a Portimão está Mariana Augusto, que tem 18 anos e veio propositadamente de Queluz para os ver. No último ano e meio percorreu o país atrás dos D.A.M.A. e tem cinquenta bilhetes de concertos guardados em casa para o provar. Eles conhecem-na bem, cumprimentam-na com um abraço à chegada, já tinham trocado mensagens de telemóvel. «O que me faz gostar deles é a personalidade que têm, são boa gente primeiro que tudo. E depois há o ritmo e há as letras, que parecem falar diretamente comigo, que me resolvem a vida.» Nos momentos difíceis recorre àquele som, nos períodos felizes também. «Eles não fazem ideia de como são importantes para mim.» No braço esquerdo, traz uma tatuagem do logótipo do grupo, um triângulo dentro de um círculo. «Mesmo que um dia a banda se desfaça, salvaram-me e isso dura a vida toda.»

Já em Pombal, Tatiana Oliveira e Micaela Santana, de 16 e 15 anos, respetivamente, tinham falado dessa ideia de identidade. «Parece que estão a falar para mim, a contar a minha história.» Vê-los ao vivo deixa-as a tremer mas em casa, a ouvir as músicas pelo computador, as miúdas dizem que os D.A.M.A. as transportam lá para o território onde tudo é sentimento. «A minha mãe já percebeu o meu fascínio e deixou-se fascinar também», e Mariana volta à carga. «Quando nos deixamos levar por eles, não interessa mais nada.»

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Três mil pessoas ocupam hoje a Portimão Arena. Cada bilhete custou 17 euros. Está meia casa, mas a gritaria vale por pavilhão cheio. «Hoje vieram as fãs-fãs», diz Kasha. Os rapazes nem precisavam de se agarrar aos microfones. As miúdas entoam de cor todas as letras, há uníssono em cada variação melódica, e será assim do início ao fim do espetáculo. No final, Coimbra, Cristovinho e Kasha hão de sair de palco esgotados, fartaram-se de saltar nesta noite. E depois voltam ao ritual dos autógrafos, dos abraços e das fotografias. Mesmo que só lhes apetecesse voltar ao hotel, estar com as namoradas, pôr o sono em dia, ficam ali, trabalham para alimentar o culto. Então uma pessoa fica a pensar que é isto que os D.A.M.A. têm, esta vontade inabalável de triunfar. E isso não é pouco.