O futuro sem testes a animais

Em maio, Lisboa será palco de uma conferência internacional sobre as alternativas à experimentação animal. A odisseia científica ainda é embrionária, mas poderá representar menos sacrifício para os animais testados clinicamente em laboratório.

QUEM É MARIANA CRESPO?

Psicóloga clínica pela Universidade de Lisboa e mestre em Evolução e Biologia Humanas pela Universidade de Coimbra, com pós-graduação em Avaliação e Reabilitação Neuropsicológica, é presidente da Sociedade Portuguesa para a Educação Humanitária, que promove os direitos humanos, animais e ambientais.

É possível um futuro sem testes em animais?
_Acho que sim, sem dúvida, é nesse sentido que cada vez mais se pretende usar as novas tecnologias. Ninguém gosta de utilizar animais como cobaias; os modelos animais tradicionais apresentam limitações científicas e éticas, e os cientistas que a eles recorrem fazem-no porque acreditam que é um mal necessário e não por terem prazer em fazê-lo. Na realidade, a recetividade da comunidade científica é imensa e é consensual a importância do desenvolvimento de alternativas ao uso de modelos animais.

E que modelos alternativos são esses? Já estão disponíveis?
_Por exemplo, neste momento, dispomos de modelos tridimensionais de órgãos que nos permitem avaliar o impacto de diversas substâncias ao nível global do órgão e não apenas ao nível da célula, o que abre imensas possibilidades. E o mesmo é verdade com a investigação em células estaminais. Quanto ao desenvolvimento de curas para o cancro e outras doenças, é importante recordarmos que, neste momento, sabemos provocar e curar praticamente todos os tipos de cancro em ratos, mas quando tentamos aplicar os mesmos princípios aos humanos, os resultados não são extrapoláveis. Além disso, é de ressalvar que as mais relevantes descobertas científicas nesta área foram feitas com seres humanos e não com modelos animais.

Mas estas novas soluções não comprometem o avanço na ciência e na medicina?
_Pelo contrário! As alternativas existentes são até mais fiáveis e seguras. Segundo dados da Food and Drug Administration – entidade americana que regulamenta a entrada de medicamentos no mercado –, apenas oito por cento dos fármacos testados com animais vêm a ter o resultado esperado em seres humanos. Esta percentagem é extremamente baixa. Os testes alternativos já validados têm uma eficácia muito superior. Também ao nível da compreensão e do estudo das doenças humanas há uma evolução constante que abre novas portas nesta matéria.

Mas é possível observar resultados ?
_Sem dúvida. Já este ano, foi descoberto o gene responsável pela mais agressiva forma de cancro da mama, recorrendo exclusivamente ao estudo de células humanas de 3000 pacientes. Hoje, existem também modelos computacionais tão sofisticados que permitem parametrizar individualmente cada paciente e prever qual a resposta que cada organismo terá a cada tratamento. No fundo, criam-se versões virtuais de cada pessoa, o que permite fazer simulações de processos de doença e tratamento.

Parece um cenário extraído de um filme futurista.
_Verdade. Até há poucos anos, isto seria ficção científica, mas neste momento o projeto internacional Discipulus – que será apresentado na conferência – encontra-se já a desenvolver esta forma de «ser humano virtual». O iBrain, inventado pelo professor Philip Low, outro nome sonante que vem a Lisboa, é um bom exemplo dos recentes avanços. Este pequeno aparelho permite estudar o cérebro humano em funcionamento de forma não invasiva e substituir, de forma muito mais eficaz, alguns dos estudos invasivos feitos com primatas e outros animais.

Foi também ele que conseguiu oficializar, em Cambridge, uma importante declaração que atestava cientificamente que animais como golfinhos, polvos, macacos ou pássaros têm consciência. O que muda agora?
_Ao ser provado cientificamente que um animal é senciente e consciente, levantam-se questões relevantes quanto à necessidade de ter isso em consideração, em particular, quando com eles desenvolvemos atividades que podem pôr em causa essa integridade. O reconhecimento da existência de consciência nos animais não humanos tem obviamente implicações éticas na forma como os mesmos são tratados pelos seres humanos.

Mas havia dúvidas entre a comunidade científica?
_Penso que a existência de consciência nos animais é sobejamente reconhecida entre biólogos, veterinários e investigadores. Contudo, cientistas de outras áreas até da saúde humana poderiam não ter este facto tão presente

A questão das alternativas à experimentação animal ainda está fora das notícias?
_Não me parece. Cada vez mais, são publicadas notícias na comunicação social acerca das grandes descobertas que se alcançam para o avanço da medicina recorrendo a testes sem animais, algumas das quais até feitas em Portugal. Por exemplo, a investigadora Teresa Rosete e a sua equipa da Universidade de Coimbra foram alvo de grande mediatismo, em 2012, quando desenvolveram um teste in vitro inovador que permite avaliar o potencial alergénico cutâneo e assim reduzir significativamente as experiências com animais na indústria dos cosméticos.

Por falar em cosméticos, houve um passo importante nas normativas europeias.
_ Sim, a União Europeia já proibiu o uso de testes animais na cosmética, o que foi um enorme passo, não só devido ao número de animais poupados mas, sobretudo, devido ao investimento que esta legislação levou a nível do desenvolvimento de alternativas que acabam depois por ter aplicação noutras áreas. Por exemplo, os testes de irritação ocular que foram desenvolvidos para a indústria cosmética, em primeiro lugar por causa dos champôs, são hoje utilizados para testar novos tratamentos oftalmológicos, com muito maior sucesso.

Pode dizer-se que Portugal está na linha da frente na implantação e no desenvolvimento de novas patentes e sistemas artificiais?
_É difícil responder a esta pergunta, visto que a ciência é cooperativa e envolve muito
frequentemente cientistas e entidades diferentes. A União Europeia está na linha da frente no desenvolvimento e na implementação de alternativas à experimentação animal e existem vários grandes projetos europeus nos quais colaboram cientistas e universidades portuguesas. Dois exemplos são os projetos Notox e Cosmos, que procuram combinar metodologias que permitam a substituição total de modelos animais em estudos toxicológicos.

Já se percebeu que os animais só têm a ganhar se não forem usados em testes pré-clínicos. Mas quem perde? Os interesses económicos das grandes farmacêuticas?
_Não sei se podemos dizer que há grandes interesses económicos por detrás do pano. É evidente que existem empresas que beneficiam da experimentação animal, mas considero que o principal entrave é a falta de comunicação no interior da própria comunidade científica e entre a população e os decisores políticos e reguladores. A dificuldade está mais nas especificidades técnicas e na força do statu quo, e é importante referir que existe uma grande desconexão entre a atividade clínica (com humanos) e pré-clínica (com animais). Os trabalhos que utilizam animais para estudar doenças humanas acabam por ter pouca relevância no desenho das investigações com humanos.

CONFERÊNCIA DE ALTERNATIVAS À EXPERIMENTAÇÃO ANIMAL

A segunda edição desta conferência vai acontecer a 8 e 9 de maio, no Fórum Picoas, em Lisboa. O objetivo é promover o debate e a troca de informação relativamente às alternativas à experimentação animal entre cientistas, grupos de trabalho, estudantes e público em geral. A conferência contará com duas sessões plenárias e um painel de excelência de oradores nacionais e internacionais que se dedicam ao desenvolvimento, validação e legislação nesta nova área. Lado a lado com cientistas portugueses que têm desenvolvido um trabalho notável na procura de novas respostas, também responderam à chamada nomes de peso como Philip
Low, neurocientista norte-americano à frente do projecto iBrain, Bas Blaauboer, editor da revista científica Toxicoly in Vitro e professor de Métodos Alternativos à Experimentação Animal na Universidade de Utrecht, e Mark Cronin, coordenador do projecto Cosmos da Universidade de Liverpool, entre muitos outros. Serão apresentados os mais recentes métodos alternativos ao uso de animais devidamente validados, bem como alguns dos grandes projetos europeus in vitro e in silico. A conferência é aberta ao público mediante inscrição prévia. Tudo o que precisa de saber está no site oficial (www.icaae.com).