O cante de Pedro

Em novembro, o cante alentejano foi classificado Património da Humanidade. Uma forma de reconhecer e garantir o futuro de uma tradição. Pedro Mestre leva o cante às escolas, ensinando-o aos mais novos. Em miúdo, diziam-lhe que gostava da «música dos velhos». Hoje faz disso vida.

As primeiras modas aprendeu-as com o avô e com a mãe. Can­tavam-nas ao serão, «à roda da lareira ou ao pial da porta», o ponto de encontro onde laços familiares e de vizi­nhança se estreitavam. Aos 10 anos trocou algumas das horas de brincar pelo gru­po coral infantil Os Carapinhas de Cas­tro Verde. Aos 15, já com Os Ganhões, apu­rou o gosto pelo cante, que levou «a vários pontos do país e no estrangeiro». A banda sonora da adolescência de Pedro Mestre era de música tradicional. A viola campa­niça que hoje toca, ouviu-a, pela primei­ra vez, no Património, programa transmi­tido pela Rádio Castrense, que o avô fazia questão de sintonizar acompanhado pelo neto. «Fiquei fascinado pela sonoridade. Parti à descoberta da história deste instru­mento, que tão bem caracteriza o Alentejo e quase esteve extinto.» Hoje tem mais de cem campaniças. «A primeira, comprei-a aos 11 anos ao construtor Amílcar Silva, de Santana da Serra. Foi com esta viola que aprendi os primeiros acordes e fiz os pri­meiros concertos.» Só três anos depois de ter começado a aprender o instrumento é que teve companhia de outros tocadores da sua idade. Pedro, o cante e a campani­ça formavam e formam um trio. Viver em dueto não lhe faz sentido, para ele.

«Desde o momento em que a candidatura começou a ser elaborada e que se perspeti­vava que o cante poderia vir a ser reconheci­do como Património Cultural e Imaterial da Humanidade, os órgãos de comunicação so­cial e as redes sociais começaram a dar-lhe destaque.» Foi uma oportunidade de ouro: o cante estava a ser falado. E a ser mostrado ao país e ao mundo. «Surgiram novos grupos corais e projetos musicais, criaram-se gru­pos de trabalho, promoveram-se eventos, etc…» O cante está na moda. A este facto, Pe­dro acrescenta um outro: a internet. Desen­gane-se quem pensa que o cante é igual por todo o Alentejo. Nem sequer o é no mesmo município. A conjugação dos fatores «mo­da» e facilidade de acesso atenuam as fron­teiras entre os diferentes «cantes» quando, por exemplo, o de uma determinada locali­dade é entoado por cantadores de outra lo­calidade vizinha. O risco, para Pedro, é que as características de cada um, que tanto o enriquecem, se diluam. «É importante que o cante se apresente de forma digna e ver­dadeira. Isso exige trabalho árduo por par­te dos dirigentes ou ensaiadores dos grupos corais, bem como dos cantadores. Gostaria que atraísse cada vez mais jovens e que es­tes levassem a sério esta tradição.» E rema­ta: «Será que estou a ser demasiado purista?» Não colocou a pergunta; pensou em voz alta.

Porque não é escrito, cada cantador faz o cante evoluir. Como evoluíram também os temas cantados. A lavoura deixou de ser temática privilegiada, mas ainda se canta a natureza, os costumes, as pessoas, as mu­lheres, as mães. Em tempos, conta Pedro, as gerações mais velhas que integravam os grupos corais eram «fechadas» e pouco re­cetivas à entrada de jovens, temendo que es­tes não soubessem defender ou representar bem o cante. «Eu senti isso, quando integrei o grupo coral Os Ganhões, no qual assumi a função de ensaiador aos 15 anos. Mas, a par­tir do início deste século, deu-se uma vira­gem e abrem-se mentalidades: os jovens começaram a despertar o seu interesse pe­lo cante, e as gerações mais velhas a acre­ditar que o futuro do cante passava pela transmissão do saber.»

Os lugares do cante também já não são os tradicionais – os campos de cultivo, as ruas, as tabernas… Atualmente, surge de forma mais performativa do que espontânea, «mas isso não significa que seja desvirtuado, des­de que bem cantado, indo “beber à fonte”, à sua origem». Por isso, aos 31 anos, este alen­tejano natural da Aldeia da Sete (Castro Ver­de) acredita que o futuro do cante passa pela transmissão da tradição e do saber aos mais jovens. Se em tempos a aprendizagem esta­va salvaguardada pela família e vizinhos, hoje passa também pela escola.

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«Foi num colóquio sobre música tradicio­nal, em Almodôvar, no final de 2006, que o meu desejo de levar o cante às escolas foi de­batido em público pela primeira vez. E em ja­neiro de 2007 reuniram-se as condições pa­ra isso. O ensino do cante alentejano surgiu como atividade de enriquecimento curricu­lar, apoiado pelo Município de Almodôvar, destinado aos alunos do primeiro ciclo do ensino básico.» Despertar, nos mais novos, o gosto pelo cante, valorizar e divulgar a cul­tura e as tradições do Alentejo e sobretudo motivar as novas gerações para a preserva­ção da música tradicional são o principal ob­jetivo. «Pretendem formar-se não só vozes para o cante mas também novos públicos para o ex libris da região.» Sobretudo agora, que o cante foi elevado a Património da Hu­manidade.

A iniciativa estendeu-se a outros conce­lhos: em 2009 o cante entrou nas escolas de Serpa e Ourique. Pedro não ensina teoria: «É uma transmissão oral, por imitação.» Uma si­nergia entre a música e algumas disciplinas, como o Português. «A professora usa poemas que cantamos», explica, sublinhando que a música tem ajudado na aprendizagem de lei­tura, em alunos com necessidades especiais.
Em vigor há cerca de oito anos, o proje­to tem cumprido o seu intuito já que o can­te continua para além da sala de aula, com alguns novos grupos a surgir entretanto, em Almodôvar ou Vila Nova de São Bento(Serpa), formados por ex-alunos. E alguns integram atualmente outros grupos corais, ajudando à sua renovação.

O cante alentejano pode ser também acom­panhado pela viola campaniça. Mas o instru­mento anima ainda os cantares ao desafio, as modas campaniças, os bailes que caracte­rizam a zona do «Campo Branco», compre­endendo os municípios de Aljustrel, Ouri­que, Castro Verde, Almodôvar e parte do de Odemira. E acompanha também Pedro Mes­tre no primeiro trabalho a solo, Campaniça do Despique. O corpo perfeito de um destes ins­trumentos deverá ter 25x18x10 centímetros. É a cintura estreita que lhe provoca o som dis­tinto de outras violas. Leva um cordão para poder ser transportada ao ombro e tem um pompom – noutros tempos, cordão e pom­pom eram oferecidos pelas moças solteiras como sinal de interesse pelo tocador.

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À Campaniça do Despique, já à venda, Pedro empresta a voz e ainda convida a de Antó­nio Zambujo e a de Janita Salomé, entre ou­tras. A campaniça que dedilha partilha pro­tagonismo com a guitarra portuguesa de Guilherme Banza e a clássica de Jorge Fer­nando. Tocam também o piano, o órgão de tubos, o acordeão e flauta de José Manuel David, dos Gaiteiros de Lisboa. Juntam-se todos nas faixas do disco como se o disco fos­se o pial da porta.