Famílias à beira de um ataque de nervos

Uma ceia como as dos anúncios pede várias gerações felizes, a brindarem juntas diante de uma lareira acesa. Mas não existe apenas amor em família no Natal. Também há zangas antigas e incompatibilidades insanáveis, capazes de transformar o encontro em azia se não travarmos o mal-estar a tempo.

Na noite de 23 de dezembro, Teresa Ramos dorme em sobressalto. O pinheiro está enfeitado, a casa decorada, o bacalhau a demolhar. Os doces estão quase prontos, o bolo-rei é lindo, tem prendas para todos. Desde miúda que adora o Natal em família, quando eram só os pais, ela, o irmão, o tio e os avós paternos, aninhados no sofá sob a manta aos quadrados, à espera da meia-noite. Depois o tio casou-se com aquela nova tia empertigada que lhe faz a cabeça em água, o avô morreu. Nasceram os primos gémeos, cada um mais mal-educado que o outro. A avó já disse que está velha e quer todos a celebrar juntos enquanto for viva. E ela continua a vibrar com a festa, apesar dos ataques de stress ao pensar na consoada. Talvez este ano venham todos com mais vontade de cooperar.

«A importância do conceito de família perdeu-se um bocado. Os laços familiares andam a valer menos e, muitas vezes, uma ou outra desavença é suficiente para produzir afastamentos», explica Vítor Rodrigues, psicólogo e humanista convicto, mas não ao ponto de negar a dificuldade de sentar certas famílias à mesa de Natal: «O tipo de contexto em que andamos imersos, numa sociedade ocidental que nos ensina a ser desconfiados e a valorizar o dinheiro acima de tudo, contribui para sermos mais sensíveis a desavenças e a lutar menos por amizades e relacionamentos familiares.» Há quem viva a quadra como a obrigação de dar prendas, uma competição pelas melhores, vergonha de não as ter ou inveja de terceiros. Já para não falar de sentimentos mal resolvidos e choque de personalidades.

«Os conflitos humanos continuam a ter origem em disputas de bens, ressentimentos guardados, medos de parte a parte, orgulhos, humilhações, invejas, ciúmes – presentes e passados», aponta o especialista. Contrariamente ao ideal natalício, em que famílias glamorosas trincham o peru a ouvir Silent Night, não existe apenas amor entre os seus membros: também há ódios de estimação e velhas feridas. «Idealmente, num ritual familiar, os momentos de sentar para comer, de abrir as prendas, até a ordem pela qual se chega aos pratos de uma ceia, tudo isso deveria estar ao serviço dos afetos», diz. Juntar-se à mesa com calma, para partilhar a abundância relativa e intensificar laços. Ainda assim, as embirrações acontecem quando o encontro se torna-se um conjunto de obrigações que nos desligam de querer estar com os outros.

«As famílias são um âmago de sentimentos, uns mais confortáveis e agradáveis, outros menos, com muitas histórias e emoções nem sempre fáceis de dissecar ou resolver», confirma Gustavo Pedrosa, terapeuta familiar da Oficina de Psicologia. Espera-se que existam amores e risos a servir de contraponto às zangas: a empatia e a escuta ativa são sempre bons indicadores de uma comunicação saudável. Apesar disso, o facto de o Natal ser afetivamente carregado é propício a ataques de nervos. «Se considerarmos a família como uma junção de vários sistemas familiares, podemos estar a querer que pessoas com valores, gostos e expetativas diferentes cumpram a tradição de uma forma que não lhes faz sentido ou lhes é pouco agradável.» O cenário complica-se ainda mais ao juntar à equação famílias distintas (as do marido e da mulher), divórcios, recomposições familiares, múltiplas faixas etárias e novos agregados entretanto formados (por exemplo, os de dois irmãos). «Pode tornar-se também mais difícil devido a conflitos não resolvidos, sentimentos não expressos e afastamentos do dia-a-dia.»

NO JANTAR DE 24 DE DEZEMBRO, Teresa entra na sala com uma travessa fumegante nas mãos, o bacalhau e os ovos acamados em couve, tudo regado com azeite quente aromatizado com alho. Enquanto a maioria a saúda com entusiasmo, os gémeos torcem o nariz: «É peixe, que nojo!» A tia comenta não ser grande apreciadora de bacalhau cozido, prefere-o com natas, muito mais saboroso. O tio pede desculpa com os olhos e muda de assunto. Mais tarde, à sobremesa, Bekas salta para o colo da dona a pedir mimos e a tia sentencia ser falta de higiene comer agarrada à gata, onde já se viu, pelos por toda a parte. Teresa respira fundo, resiste à tentação de lhe atirar as farófias ao vestido carmim. Em vez disso serve-se de mais molho de leite-creme, conta até vinte e escolhe perdoar, a bem da harmonia ao serão.

«Os conflitos devem ser geridos antes do encontro, assumindo que todos vão cooperar para um momento de harmonia, independentemente das divergências particulares», aplaude Catarina Rivero, psicóloga e terapeuta familiar. Os rituais são a cola que permite manter os membros ligados, apesar de eventuais tensões e afastamentos ao longo do ano. «Fortalecem a identidade familiar, contribuindo para o reforço da importância das raízes de cada um dos envolvidos.» Renovam o sentido maior do que é ser família, sublinha. Cabe depois a cada uma gerir o seu período de tréguas. «Para algumas pessoas, o conflito pode ser tão intenso que é natural optarem por não participar na festa durante um ano ou dois, por muito que a decisão lhes custe emocionalmente. A maioria, no entanto, vai considerar que a família deve ser elevada acima de tudo, apesar das zangas, e continuará a participar  no ritual alargado.»

Após as despedidas, Teresa senta-se no chão em frente ao pinheiro, a rememorar as coisas boas da noite: o irmão vindo de Londres, onde trabalha; os pais, o marido, o calor humano; ver a avó tão feliz. A tia desconsiderou o colar que lhe ofereceu, óbvio: «É bonito mas um pouco simples, o que fez para a sua mãe tem mais classe.» Os gémeos mostraram ainda pior cara: queriam smartphones topo de gama e ganharam jogos de ciência (bem giros, por sinal). E amanhã é o almoço de Natal em casa dos sogros, um tormento, com a sogra e a cunhada sempre a desdenharem do que faz, aos cochichos pelos cantos. Ao menos vai poder matar saudades de familiares que não vê há séculos, muitos deles uma lufada de ar fresco. A começar pelos dois labradores da prima Vanda, que são também os maiores apreciadores de peru recheado do encontro.

«Os rituais familiares, e este mais do que outros na nossa cultura, são em geral momentos de sociabilidade, de (re)aproximação, de expressão de sentimentos e solidariedades. É isto que faz com que as pessoas insistam ano após ano, mesmo quando as coisas nem sempre resultam», sustenta a socióloga Maria das Dores Guerreiro, professora no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa e especialista em família. Sim, é verdade que cada indivíduo tem múltiplas pertenças que implicam o desdobramento da sua presença em vários encontros familiares ao longo da quadra. E sim, essa gestão nem sempre é branda. Mas a investigadora não crê que o sentido tradicional do Natal como festa da família tenha desaparecido: «É por ele que suspendemos os nossos quotidianos e estilos de vida do ano inteiro para celebrarmos juntos. Revemos memórias do nosso percurso biográfico que partilhamos com esses membros. Até nos sentimos legitimados a transgredir dietas para saborear as ementas natalícias.»

Vítor Rodrigues destaca ainda o facto de o Natal não ter de ser enfadonho nem amarrar-nos a rituais, dado estes deverem estar ao serviço das pessoas e não o contrário. «Se houver pouco tempo, pode abandalhar-se a ceia de modo criativo e bem-humorado, mudando o local onde a fazemos, ou comendo piza em vez de bacalhau, ou gelado em vez de rabanadas. O Natal europeu celebra o nascimento de Cristo, mas o que é isso para um ateu? Pode ser o renascimento do que temos de melhor, a busca de uma consciência mais clara acerca da nossa vida e da dos outros.» Gustavo Pedrosa concorda com a reviravolta, a partir do momento em que faça sentido para todos: «É possível e até aconselhável mudar velhas tradições, sobretudo quando são dolorosamente vividas. É importante retomar esse sentido de festa em família.» Melhor do que tronco de chocolate, só mesmo uma consoada em amor.

GOZE O NATAL EM PAZ

NADA DE COMPETIÇÕES
Cada um é como cada qual, todos temos jeito para coisas diferentes e, assim sendo,  não vale a pena matar-se na cozinha à espera de conseguir uma aletria tão saborosa como a da sogra, ou aqueles sonhos de abóbora que a sua irmã faz como ninguém e eclipsam o resto dos doces que lhe levaram a tarde a confecionar. Em última análise, peça-lhes que tragam as suas especialidades para a mesa da família.

DEFINA UM PLANO
Por muito que seja impossível manter todos os acontecimentos sob controlo, há detalhes que pode antecipar e lhe poupam bastante stress na hora de todos os nervos. Os brinquedos das crianças, por exemplo, podem ser comprados meses antes a preços mais em conta. Também pode dividir tarefas com os membros da família com quem se dá bem: ninguém espera que faça tudo sozinho(a).

DESFRUTE PLENAMENTE
Os rituais são preciosos: transmitem-nos a noção de família, pertença e partilha, relembram as nossas origens e o cerne das relações, tanto para o bom como para o menos bom. Daí ser importante aproveitar para relembrar tradições e reviver algumas histórias, de preferência as mais agradáveis a nível pessoal e familiar. Se os velhos rituais deixarem de fazer sentido, crie outros que promovam essa união.

DEIXE AS ZANGAS DE LONGE
Na medida do possível, os ajustes de contas devem ser feitos fora de rituais que tenham grande valor afetivo e pretendam juntar as pessoas, não separá-las. Tente que o espaço do jantar de Natal seja relativamente neutro, agradável e de respeito, guardando os assuntos geradores de tensão para outro dia.

CULTIVE A MAGIA
Por mais que alguém tenha que se entupir em remédios para sobreviver à quadra, são poucos os corações empedernidos que resistem a um pouco de atenção, a um carinho, à sensação de não terem sido esquecidos e fazerem parte de algo maior. Tenha sempre uma caixa de bombons de reserva: nunca se sabe quando irá aparecer uma tia a oferecer-lhe peúgas e vai fazê-la feliz com o gesto.

NÃO IDEALIZE
Já dizia o ditado que o ótimo é inimigo do bom, pelo que mais vale não esperar demasiado do Natal e partir para a reunião de família com o espírito aberto, disposto(a) a prestar menos atenção às falhas alheias e até a perdoar aquilo que possa correr pior. Seja realista. Dê atenção ao que cada pessoa sentada à sua mesa tem para dizer ou partilhar.

MUDE O CHIP
A questão do consumo nas sociedades modernas faz-nos perder de vista coisas que realmente nos fazem sentir bem, como ter tempo para estar com quem amamos e acarinhar outros valores pessoais. Em lugar de dar presentes para compensar o que se perde em termos humanos, ofereça o seu tempo, amizade e amor.

CUIDE DE SI
Tratar bem de nós mesmos é o primeiro passo para queremos cuidar dos outros, inclusive quando só nos apetece atirar o peru à cabeça de alguém. Reserve algum tempo para tomar um chá em silêncio, ler um livro, fazer uma massagem, arranjar o cabelo. A família vai de certeza beneficiar por acréscimo.