Maria Elisa

Confissões de Uma Mulher Madura, guia para o «terceiro ato da vida», que acaba de chegar às livrarias, é também o levantar do véu da autobiografia que a mulher que foi um dos primeiros ícones femininos da televisão portuguesa planeia escrever. Aos 65 anos, Maria Elisa fala sem pudores de uma vida cheia.

Falava sozinha durante horas e ninguém me ouvia. É por isso que falo tanto agora.» Filha única até aos nove anos, viveu uma infância nómada no Alentejo até descobrir a paixão pela representação. A televisão surgiu por acaso, mas é por causa da caixinha mágica que ainda hoje é reconhecida. Foi a primeira (e única, até à data) mulher a assumir o cargo de diretora de Programas numa estação de televisão. «A minha carreira na RTP é ilustrativa do que foi o percurso das mulheres em Portugal: com coisas muito positivas, com oportunidades fantásticas, que só nos foram dadas porque aconteceu o 25 de Abril, mas também com muita perseguição pelo caminho.» Numa entrevista em que quase nada fica por dizer, Maria Elisa Domingues fala da desilusão que sentiu quando Durão Barroso, chefe do governo pelo qual foi deputada, se demitiu para assumir a presidência da Comissão Europeia, do casamento com o advogado norte-americano Sanford Hartman, do tempo dividido entre Portugal e os EUA, da tese de doutoramento que pretende terminar e do livro de memórias que gostaria de escrever.

Em Confissões de Uma Mulher Madura questiona se os 60 não serão os novos 50 ou 40. Por que não hão-de ser os 60, ponto final?
_ As pessoas têm a necessidade de se sentirem mais novas porque, sobretudo para as mulheres, os padrões sociais são muito exigentes. As mulheres, assim que começam a parecer mais velhas, sentem-se descartadas. Quer pelos homens quer do ponto de vista profissional. Em Inglaterra, país onde estas coisas estão mais avançadas, começa a haver possibilidade de as pessoas lutarem contra a discriminação. Há uma série de anos quis usar a figura do assédio moral em relação à RTP e fui completamente dissuadida, como conto no livro
Utiliza no seu livro a expressão «assédio moral» em duas situações: a que se passou em 1998, quando, com a sua equipa, foi mudada para um apartamento em frente ao antigo edifício da RTP e, depois, em 2012, quando rescinde com a estação. Legalmente, mesmo na altura, poderia ter feito alguma coisa.
_ Tentei.
E o que é que a dissuadiu?
_ A minha advogada. Disse-me que era muito difícil de provar. Porque aquilo também eram instalações da RTP.
Porque é que isso aconteceu? Consegue descortinar as razões?
_ Perfeitamente! É uma forma de humilhação como outra qualquer. Porque é que uma pessoa que está no auge da sua carreira, com um programa semanal com êxito, é privada de todo o convívio de um prédio inteiro onde havia centenas de funcionários e passa para o outro lado onde só havia mais duas pessoas que, na altura, não estavam a fazer nada?
Quando lemos o seu livro, ficamos com a ideia de que há muito mais para contar.
_ Há muito mais [risos]!
Se escrevesse um livro de memórias, iria melindrar muita gente.
_ Tenho a esperança de ter a coragem para o escrever. Acho que é um dever. A minha carreira na RTP é muito ilustrativa do que foi o percurso das mulheres em Portugal. Com coisas muito positivas, com oportunidades fantásticas, que só nos foram dadas porque aconteceu o 25 de Abril, mas também com muita perseguição e muitas formas de assédio moral que visavam, de facto, desmoralizar. Quem me conhece sabe que sou uma pessoa de afetos. Sofro imenso e exteriorizo isso. Portanto, pensariam que seria fácil, com estas coisas, amachucar- me, deixar-me em baixo, mas nessas alturas aguento-me. Sou, ao mesmo tempo, uma lutadora. Vou mais abaixo com pequenas coisas, diria. Mas situações dessa dimensão, que vejo que são pura discriminação… Nós não tínhamos aquecimento! Aquilo era um frio horrível, não imagina o frio que passávamos naquele sítio!
Na altura tinha no ar o programa Maria Elisa?
_ Foi logo a seguir. O Maria Elisa foi-me encomendado pela chamada direção dos Joaquins, Joaquim Furtado e o Joaquim Vieira. Fi-lo por contrato de prestação de serviços, enquanto estava como diretora de Comunicação da Gulbenkian. E aí tudo se passou muito bem. Fui despejada para lá quando eles saíram. Saí da Gulbenkian porque quem me convidou, o professor Ferrer Correia, um dos maiores vultos intelectuais deste país, saiu e eu entendi que devia sair também. Depois voltei para a RTP. Mas que fique claro que, durante o Maria Elisa, tudo se passou o melhor possível. Fui muito bem tratada.
No final do seu percurso na RTP, volta a acontecer mais ou menos a mesma coisa.
_ Não tanto porque não havia outro edifício, já se tinha vendido tudo [gargalhada]. Na Marechal Gomes da Costa [avenida de Lisboa onde se situa a atual sede da RTP] não foi nada de explícito. Muito pelocontrário. Nunca recebi senão palavras de elogio da direção.
Então, o que aconteceu?
_ Não tive trabalho durante um ano.
Foi iniciativa sua rescindir com a RTP, em 2012?
_ Sim, porque fui aconselhada pelo próprio presidente, o Dr. Guilherme Costa.
Foi no processo de rescisões voluntárias?
_ Sim, mas também acho que fui das últimas do mandato dele. Acho que ele próprio se convenceu de que não havia grande volta a dar. Nesta situação foi quase mais bizarro porque tudo o que me era dito é que eu era a melhor jornalista!
Quando foi a última vez que esteve na RTP?
_ Foi, já depois de sair, para promover o meu livro Amar e Cuidar.
Qual foi a sensação?
_ Fui só fazer a promoção do meu livro. Tentei não pensar em nada e consegui. Quando as coisas me desagradam muito, ignoro-as. Nos períodos em que sofri mais com os jornais, quando estava na Assembleia da República, ia à banca, comprava-os todos, dobrava-os e não lia uma linha. Tenho tudo guardado para as memórias.
Nunca leu, nos quase dois anos em que foi deputada [Maria Elisa foi eleita em abril de 2002 e renunciou em novembro de 2003]?
_ Uma ou outra coisa terei lido. Deixei de fazê-lo quando aquilo piorou e eu percebi que era só para abater e dizer mal. Sobre uma das piores coisas que escreveram sobre mim, uma pessoa responsável do jornal disse-me: «Eh pá, já sabia que te ias chatear mas eu não tinha mais nada para a primeira página.» Tal e qual. Para que é que eu ia ler? Não aguentaria. Teria tido uma depressão, ficaria doente. Assim, aguentei. Quando sei que é completamente mentira, que não há nada a fazer, que é uma campanha completamente orquestrada para desfazer, compro e guardo. Está tudo guardado.
Ao ler peças jornalísticas do passado sobre si sente-se que, ao longo de 30 anos, houve uma certa obsessão coletiva consigo…
_ Eu também, infelizmente.
Seja quando foi assessora de Maria de Lourdes Pintasilgo, seja depois quando foi deputada, seja ainda nesta última fase na RTP. Como explica isso?
_ Não sei.
Foi por ser mulher?
_ Não tenho dúvida que sim e, nessa fase da engenheira Maria de Lourdes Pintasilgo, além disso tinha 29 anos e eu é que decidia quase com quem ela falava ou não! Quando fui diretora de Programas pela primeira vez, com 30 anos [1980], fui chefiar 600 pessoas e muitos dos homens, a quem tinha de dizer coisas que podiam não ser muito agradáveis, tinham o dobro da minha idade, isto há 35 anos… Agora, o empowerment feminino está muito na berra. Temos as Beyoncés todas deste mundo a falar sobre isso. Mas estamos a falar de um tempo em que nada disso acontecia.
Quando foi assessora de Maria de Lourdes Pintasilgo parecia-lhe que as coisas estavam a andar a um ritmo mais rápido do que, efetivamente, aconteceu? Em 1979, tivemos uma mulher primeira-ministra…
_ Aconteceu tudo um bocadinho por acaso. Eu tive o protagonismo que tive por causa da revolução. E ela também. Na altura, o general Ramalho Eanes, como presidente da República, teve a capacidade de fazer governos de iniciativa presidencial e conhecia-a bem. Ele tinha uma grande admiração intelectual por ela, mais do que política. A Maria de Lourdes Pintasilgo era uma esponja de absorver informação. Nunca casou, não tinha filhos, não fazia mais nada. Lia, escrevia e fazia os trabalhos que tinha para fazer sempre na base de acumular informação de uma maneira articulada. Acho que ele teve uma enorme admiração por ela. Nunca lhe perguntei mas estou convencida de que ele teve algumas surpresas com ela do ponto de vista político [risos]!
Em que aspetos?
_ Porque ela podia ser um bocadinho desconcertante e fazer coisas de que não se estava à espera. Ela tinha sido da Câmara Corporativa no governo de Marcelo Caetano. Pareceria talvez mais moderada do que veio a revelar-se. Teve alguns aspetos que foram muito criticados na época, o que até posso perceber. Mas foi um governo curto, para preparar eleições. Não tínhamos muito tempo para tratar as questões do feminismo. Para nós, para a equipa que lá estava, que era maioritariamente de mulheres, era uma coisa natural, com a qual sempre tínhamos vivido. Fazia parte do nosso ADN.
Revê-se no atual PSD como se revia no partido pelo qual foi deputada?
_ Não. Revi-me temporariamente no PSD e, para dizer a verdade, revi- me no projeto do Dr. Durão Barroso para o PSD. São coisas completamente diferentes. Foi, infelizmente, um projeto efémero porque ele decidiu ir-se embora. Do ponto de vista pessoal, foi uma coisa terrível. Fui perseguida dentro do Parlamento, simultaneamente pelo PS, que inventou uma incompatibilidade para mim. Durante um ano, o assunto principal daquele Parlamento era a comissão de ética reunir para ver se me punham na rua, como acabaram por conseguir.
Não havia essa incompatibilidade, por estar a exercer funções na RTP?
_ Não! Nem há! Eu propunha-me entregar a carteira profissional de jornalista e fazer só programas culturais. Nunca foi isso que esteve em questão. E, por outro lado, tinha o PSD, a máquina, que me odiou desde o primeiro segundo.
Porquê?
_ Porque fui cabeça de lista no lugar de pessoas que andavam lá pelas concelhias… já imaginou o tempo que eles andam por ali, de degrau em degrau, até chegarem a cabeça de lista? Eu fui muito ingénua e estava muito empolgada pelo projeto de Durão Barroso que fez uma coisa notável: tinha um número assinalável de mulheres cabeça de lista, a Dra. Manuela Ferreira Leite, a Dra. Leonor Beleza, a Assunção Esteves… isso entusiasmou-me muito.
Ficou desiludida quando ele decidiu ir para Bruxelas?
_ Fiquei.
Acha que, tendo em conta a situação que o país atravessava, deveria ter sido uma decisão tomada com mais tato?
_ Acho que as pessoas que foram para a política só por causa dele, como foi o meu caso, ficaram muito desiludidas. Não vou dizer que não peso também as contrapartidas no plano pessoal, e até nacional, por ser português. Já tínhamos o Mourinho no futebol e agora íamos ter um na política. Isso pode ter sido interessante para a imagem do país, mas a nível pessoal e político, senti-me completamente órfã. E acho que o país ficou também, como se viu. Não acho que tenha sido bom [pausa]. Agora, a máquina do partido contra mim foi uma coisa absolutamente trituradora. Eu sei que três quartos dos artigos que saíam na imprensa contra mim eram lá postos por pessoas do PSD.
Isso já não era nada de novo para si.
_ Não, mas custa sempre. Não acho que se fique com uma carapaça. Eu, pelo menos, nunca consegui ser assim.
Foi nessa altura que percebeu que a política não era para si?
_ Acho que, provavelmente, não é mesmo.
Existia uma espécie de mito urbano sobre um suposto filme erótico que teria feito e que fez capa do extinto jornal Tal & Qual. Um filme que era, afinal, sobre o período pós-guerra-colonial.
_ É que até dá vontade de rir! Era um filme a denunciar o colonialismo português! Era estritamente político, mais nada!
O filme nunca foi exibido.
_ Foi, foi!
Mas depois aparece na capa do Tal & Qual.
_ Um fotograma. Mas eu também sei porquê.
Porquê?
_ Foi uma questão de puro revanchismo de uma pessoa que dependia de mim na altura e que eu não promovi. E fui avisada de que ia acontecer. Faço questão de dizer que era um filme político! Chamava-se Omalawangalangue e era sobre uma lenda africana. Foi filmado na Costa de Caparica como se fosse a savana africana. Pagávamos as nossas refeições e ainda a película! Essa capa foi dos maiores desgostos da minha vida. Foi um choque brutal que tive com o jornalismo. Começou aí a história de não ler os jornais. E foi um choque em relação aos meus colegas! Porque eu sabia quem eram os tipos que trabalhavam naquele jornal. Eles não arranjaram o fotograma, foi-lhes dado por um funcionário da RTP que eu sei quem é.
Chegou a falar com essa pessoa?
_Não, nem nunca mais falarei na vida. Nisso sou radical. Sabe, o meu pai, que foi sempre de esquerda, militou no MUD [Movimento de Unidade Democrática] juvenil, odiou que eu fosse para a televisão. Ele e a minha mãe. Acharam que era um meio horrível. O meu pai comprava o Tal & Qual todos os sábados e achava que era um jornal fantástico e foi ele que me disse: «Há para aí um jornal que é uma porcaria e traz uma coisa infame. Tu nem olhes se fores à rua.» Nunca mais comprou o Tal & Qual. Acho que sofreu mais do que eu. Ele sabia exatamente o que era o filme e era um homem de convicções.
Esses casos fizeram-na perder a fé no jornalismo?
_ Não. Nem no jornalismo nem nas pessoas. Felizmente tenho isso de bom. Sofro muito na altura mas não generalizo as pessoas e os comportamentos. Tento percebê-los naquele enquadramento.
Nasceu em Lisboa?
_ Nasci, mas fui criada no Alentejo, porque o meu pai era engenheiro geógrafo. Vim a Lisboa fazer a admissão ao liceu. Estudei em casa, com os meus pais.
A adaptação foi um choque?
_ Um choque foram umas reguadas que acabaram logo porque o meu pai foi lá dizer que batia à professora [risos]! Eu só podia ser proposta à admissão através de uma escola. O meu pai inscreveu-me e eu não estava habituada a estar com meninos. Fui filha única até aos nove anos. Virei-me para trás e estava entusiasmadíssima a falar com as outras meninas e a professora veio, muito caladinha, chegou-se ao pé de mim e deu-me várias reguadas. Fiquei para morrer! Os meus pais nunca nos bateram. Cheguei a casa, disse ao meu pai, ele chegou lá e ameaçou de tal forma a senhora que nunca mais ninguém me tocou na vida. Mas depois gostei imenso de andar no liceu [Filipa de Lencastre]. Na altura, se as meninas fossem apanhadas com um rapaz a menos de 500 metros do liceu levavam uma falta de castigo e, à terceira, eram expulsas. O ensino era separado por sexos mas nós tínhamos o [Liceu] Camões, que era de rapazes, relativamente perto. E alguns vinham até ali. Ou outros do [Instituto Superior] Técnico. Aliás, eu fiz a minha politização nas RGA [Reunião Geral de Alunos] do Técnico.
Levou alguma falta?
_ Não. Normalmente, íamos conversar para a [pastelaria] Mexicana. Mas eu fui uma miúda muito tímida.
O facto de ter crescido só com os seus pais contribuiu para isso?
_ Cresci sozinha. Nós passávamos um ano em cada terra, vivi numas sete ou oito. Era uma vida totalmente nómada e muito solitária. Os meus amigos eram os amigos dos meus pais. Era com eles que me dava mais, e uma ou outra criança.
Como é que se entretinha?
_ Passava horas a brincar sozinha. Falava sozinha durante horas e ninguém me ouvia. É por isso que falo tanto agora.
Os seus pais eram também seus professores?
_ Sim. O meu pai tinha mais paciência. A minha mãe achava que as pessoas deviam nascer ensinadas. Mas há uma coisa significativa: lembro-me de pouquíssimas coisas. Tenho memórias isoladas dos sítios. Essa rutura constante devia ser muito difícil para uma criança. As memórias da minha infância são totalmente esfarrapadas: uma casa, o quintal…
A adaptação à vida na cidade custou-lhe?
_ Não, nós passávamos os três meses de inverno em Lisboa e os outros no Alentejo. Depois, como lhe digo, gostei logo do liceu. E tive professoras fantásticas, que me marcaram imenso.
É nessa altura que começa a despertar para a política?
_ A política foi em casa. A política, a literatura neorrealista, que hoje acho uma chatice insuportável. Li essas coisas todas muito cedo e, aí não foi pelo lado das professoras mas sim do meu pai. O meu pai era muito politizado, muito próximo do PCP…
Ele teve problemas por ser comunista?
_ Acho que nunca esteve preso. Eu é que levei sovas da polícia! Ele esteve naquelas ações de estudantes mas nunca foi preso. Não sei se ele nos disse a verdade ou não mas não creio que o meu pai tivesse sido militante. Mas era, e foi até morrer, muito próximo. O meu pai tinha discussões à séria sobre a queda do Muro de Berlim!
E a sua mãe?
_Igual.
Mas católica.
_Sim, mas há muitos católicos comunistas.
Andou na catequese, ia à igreja?
_Não, nunca me obrigaram a nada disso.
Isso, para a altura, era bastante progressista.
_Era. Fui batizada, mas não fiz a primeira comunhão. Os meus pais não eram casados pela igreja porque o meu pai não quis, coisa que a minha mãe levou sempre muito a mal até ao fim. O meu pai tinha uma paixão louca pela minha mãe mas não quis casar pela igreja por uma questão de coerência. E acho que fez bem. O que a igreja representava antigamente era uma coisa horrorosa, sinistra! A igreja foi uma força tão ou mais reacionária do que o antigo regime. Aliás, sustentavam-se um ao outro.
Conhece o seu primeiro marido na Faculdade de Medicina. Como reagiram os seus pais quando, aos 19 anos, lhes disse que queria casar?
_Mal. Sobretudo, não me deram nem espaço nem tempo para namorar. Casei ainda nem tinha feito 19. Depois conheceram-no, gostaram imenso dele e dos meus sogros. Continuaram a tentar opor-se, a dizer que era cedo, mas quando as pessoas estão mesmo muito determinadas…
Não teve grandes ocasiões para namorar durante a sua juventude?
_Não tive, não.
Isso veio a repercutir-se ao longo da sua vida?
_Sim, porque depois vive-se tudo atrasado. E vive-se de uma maneira que, se calhar, não seria a mais natural para a idade. Nesse aspeto, a educação demasiado severa dos meus pais foi muito negativa.
Como é que se falava, ou não, sobre as verdades da vida? Sobre sexo…
_ Nada, zero. Nem em casa. Aí, a esquerda não chegava. Foi uma coisa que sempre me fez imensa aflição. A esquerda era só política, quase, e toda a crítica ligada à igreja. Mas não passaria pela cabeça dos meus pais as pessoas terem relações sexuais antes do casamento. E nunca ninguém me falou em nada. E no liceu também não. Zero.
Estudou Medicina durante dois anos e depois mudou para o Conservatório para estudar Artes Dramáticas. Porquê?
_ Sempre gostei de teatro e, quando andava em Medicina, fui para o Cénico de Direito. Ainda estive lá um tempo e depois achei que era interessante estudar arte dramática. O João Mota, que era meu professor no Conservatório, convidou-me para o grupo que ia formar, a Comuna. Ainda lá estou nos registos da formação. Depois, decidi casar-me e, como os meus pais e os pais do meu marido foram
contra e disseram «OK, vocês casam mas estão por vossa conta», tivemos de arranjar trabalho. É aí que concorro para locutora da RTP e, ao fim de quase um ano, ganho. Entretanto alugámos casa com o dinheiro que ganhávamos. De repente, vi-me com a Medicina, o Conservatório e um emprego. Tive de desistir de alguma coisa.
Que idade tinha quando o seu filho nasceu?
_ 24 anos. Nasceu um mês antes da Revolução.
Como foram esses meses?
_ O meu filho nasceu na maior tranquilidade. Foi um tempo excelente. Depois, a revolução abafou tudo. O meu filho mamou dois meses, coitado, mas o tempo de licença de parto também era muito menor. Ao fim de dois meses estava a trabalhar e, aí, fui completamente absorvida por tudo o que se estava a passar, pela loucura que foram aqueles primeiros meses.
«Algumas das histórias de amor que vivi correram bastante mal», escreve no seu livro. Não lhe conhecemos assim tantos amores públicos. Foram relações discretas?
_Mas hão de conhecer, um dia, nas minhas memórias! Eu garanto que vou falar de todos os que foram importantes de facto!
Este «correram bastante mal»…
_ Não tiveram o desfecho que eu queria.
E o desfecho que queria era qual? O «felizes para sempre»?
_ Em alguns casos terá sido isso, o «felizes para sempre», concretamente num caso. Houve casos em que eu é que fui cobarde e não fui capaz de assumir o «felizes para sempre» porque não tive coragem de fazer determinadas fraturas. Tenho perfeita consciência. Noutros casos aconteceu o contrário. Fui eu vítima dessa cobardia. Depois, houve situações de uma tal gravidade que só poderei falar sobre elas quando tiver o tempo e o espaço para as enquadrar.
Está a falar de violência doméstica?
_Não lhe vou dizer se sim ou se não.
Hoje vive tranquila com essas histórias menos boas?
_ Completamente tranquila. Há uma dramática: uma percentagem arrepiante dessas pessoas já morreu, o que é estranho porque eram praticamente da minha idade. Sabe, quando as pessoas morrem, o que tínhamos contra elas desaparece. Fica-se mais com o lado bom. Não vou escrever sobre elas ou tentarei ser o mais correta possível. Felizmente, superei tudo. Apareceu-me um ótimo companheiro [o advogado norte-americano Sanford Hartman, com quem casou em 2012] numa idade em que não esperava e que é muito o reverso de tudo isso. É uma pessoa tranquilíssima, compreensiva… eu sempre lhe disse que ia fazer este livro de memórias. Ele acha lindamente. Também vai ser surpreendido. Não lhe estou a dizer que ele sabe tudo, até porque há coisas que são difíceis de enquadrar numa sociedade completamente diferente. Eu não trocava a vida que tive, mesmo com alguns momentos difíceis. Ainda hoje sei que as pessoas não percebem certas coisas que fiz porque não estavam a par do enquadramento em que vivia. No teatro, gostava muito de papéis dramáticos. Se não me tivesse acontecido nada disso, tinha sido uma chatice. Tive a minha dose de drama, de romance, de coisas que acho que são muito interessantes e que preenchem uma vida.

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«NÃO VAI À FESTA?»
Não foi de propósito mas calhou assim. A entrevista estava agendada para o mesmo dia da XX Gala dos Globos de Ouro da SIC (24 de maio). Mais: o local, o hotel Heritage, situa-se a menos de 500 metros do Coliseu dos Recreios, onde decorreu o evento. Durante as quase cinco horas de conversa, passaram famosos, conhecidos, figurantes, engalanados a preceito, senhoras de saltos altos a percorrer com dificuldade a desafiante calçada à portuguesa da Avenida da Liberdade. «Não vai à festa?», pergunta Vítor Baía, que assoma no hall de entrada. O ex-futebolista, a namorada e Virgínia Abreu, amiga de longa data de Maria Elisa, escolheram aquele hotel para pernoitarem antes dos Globos de Ouro. Um chá de jasmim e biscoitos acompanham as três horas e meia de entrevista interrompida para compor maquilhagem e cabelos e ainda para as fotografias de Paulo Alexandrino. Maria Elisa tem uma energia contagiante, apesar do jet lag de uma viagem transatlântica feita dois dias antes da entrevista. A estada por Portugal, como conta, é para promover o seu livro, rever o filho Gil e a neta Amélia, de seis anos. Mas em breve regressará aos EUA, onde vive o marido, Sanford Hartman. Raquel Costa

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MAQUILHAGEM E CABELOS: TERESA DIAS DE ALMEIDA.