Entre a pátria e a mátria

A expressão foi usada pelo poeta Henrique de Senna Fernandes e descreve o que sentem os portugueses que ainda vivem em Macau, 16 anos depois da passagem da região para a administração chinesa, a 20 de dezembro de 1999. No território que durante 442 anos foi português continua a haver dois tipos de habitantes: os macaenses e os portugueses de Portugal. Mas o «sentimento de presença» mantém-se.

«Se Portugal é a minha pátria, Macau é a minha mátria.» As palavras são do escritor macaense Henrique de Senna Fernandes (1923-2010). O pensamento percorre os milhares de portugueses que atracaram em Macau e de onde não pensam zarpar. Os mais de 450 anos de história encarregam-se de explicar porquê. Macau faz parte da rota da diáspora. Da diáspora dos expatriados. Do movimento de descolonização. Da crise.

Se com facilidade encontramos nas vielas de Macau os portugueses de Portugal, isso também acontece com os macaenses, os lusodescendentes. Muitos são portugueses de Goa. Segundas e terceiras gerações. Cidadãos do mundo. Com a pátria na alma, mas para quem Macau é agora o porto seguro. A casa. A mátria de Senna Fernandes.

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Amélia António

«Em momento algum esqueço que sou portuguesa», diz Amélia António. «Mas foi aqui que fiz a minha vida toda. Macau é a minha casa.» A advogada e presidente da Casa de Portugal deixou Lisboa em 1982 em busca de uma vida melhor. Evoca o escritor macaense para explicar que, de facto, «ao fim de vários anos é o que acabamos por sentir: Macau é a casa, é a mãe».

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Fernando Gomes

Fernando Gomes corrobora. O médico representa a terceira geração. Dos portugueses de Goa. De Vinhais e Vale de Prazeres os avós rumaram em comissão de serviço militar. Nasceu em Macau há 53 anos. Licenciou-se em Medicina em Lisboa, onde trabalhou alguns anos, regressou em 1991 para tirar a especialidade, mas desde 1998 não voltou por longos períodos à antiga metrópole. Apenas em lazer, uma a duas vezes por ano. Hoje é diretor do serviço de Medicina e Reabilitação Física do único hospital público de Macau, o Conde São Januário. Lá, médicos portugueses são cerca de vinte. Como Maria Mavilde Moreira, bragantina, que volveu agora pela segunda vez a terras macaenses. À pergunta sobre o regresso a Portugal, a anestesiologista do Centro Hospitalar de Coimbra prefere não responder.

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Vítor Sereno

Os números comprovam a multiculturalidade. A quase multipátria. No Consulado-Geral de Portugal em Macau estão inscritas 166 mil pessoas com passaporte português. Por isso, e tendo em conta a sua importância política e o volume processual, «está entre os quatro maiores do mundo», juntamente com Paris, São Paulo e Rio de Janeiro, diz o cônsul-geral Vítor Sereno. Cinco a seis mil vieram de Portugal, os outros são macaenses e chineses. «Dos expatriados, cerca de noventa por cento são qualificados. Advogados, professores, arquitetos, médicos. Ninguém quer voltar. É a geração mais bem preparada de sempre», diz o diplomata. Para Vítor Sereno, que chegou a Macau em 2013, com 42 anos, depois de ter passado por Bissau, Buenos Aires, Estugarda e Munique, «Macau é uma plataforma, um polo irradiador da língua portuguesa para a República Popular da China.»

Além da questão da língua e do fator afetivo, o facto de o território ter apenas trinta quilómetros quadrados torna tudo mais fácil para os portugueses. «É pequeno e perto, há sempre uma pessoa próxima ao lado», diz o médico Fernando Gomes, que é também presidente do Conselho Permanente das Comunidades Portuguesas.

Do lado negativo, e confirmado pelos muitos portugueses com quem falamos, está a habitação. Um apartamento com cerca de cem metros quadrados poderá custar um milhão de euros. E a renda nunca fica por menos de 1300 a 1500 euros. Um lugar de estacionamento, diz Vítor Sereno, ronda os duzentos mil euros. Mas podíamos também acrescentar o trânsito.

Depois, há a língua. Se é verdade que até 20 de dezembro de 2049, por força da transferência de soberania de Macau de Portugal para a China, selada pelos então presidentes Jorge Sampaio e Jiang Zemin, o português é, a par do chinês, a língua oficial da Região Administrativa Especial de Macau, certo é que (quase) ninguém a fala. Mas vê-se em todo o lado. É só olhar para as placas toponímicas. São 222 as ruas que homenageiam personalidades portuguesas ou estrangeiras (21 as chinesas). Em azulejaria portuguesa, sob uma tonalidade azul e branca, têm todas a tradução, não literal, em chinês. O mesmo acontecendo nas lojas. Abundam as ourivesarias e alfaiatarias. Mas pode deparar-se com uma loja de quinquilharias que vende afinal roupa de criança.

Mas que língua se fala, afinal, em Macau? Aquando do retorno à pátria, ficou definido o chinês. Assim. Simplesmente. Pelo que a maioria fala cantonense. É, aliás, um dos requisitos para se trabalhar no Consulado-Geral de Portugal. E se se tiver em conta que o salário tem por base a tabela da função pública portuguesa, facilmente se conclui que o interesse será pouco tendo em conta o custo de vida na península. Somando os funcionários do consulado com os da residência oficial do cônsul (no antigo hotel Bela Vista, um dos edifícios mais emblemáticos do território), são 25 no total. Nos últimos tempos saíram 16, revela Vítor Sereno, num organismo que todos os anos dá aos cofres do Estado 1,3 milhões de euros em emolumentos provenientes de passaportes, certidões de nascimento, de casamento, vistos, cartões do cidadão, etc…

E o acesso a cuidados de saúde? Como funciona? Fernando Gomes leva à letra a expressão «ver para crer». E leva-nos ao Conde São Januário, o hospital público da região, com 550 camas, cuja visita é obrigatória com máscara, devido à síndrome respiratória do Médio Oriente (MERS).

«Não funciona pior do que em Portugal. Nos centros de saúde, os residentes permanentes não pagam. E nas consultas de especialidade pagam setenta por cento do tabelado. Uma consulta custa 48 patacas (cerca de cinco euros). Funcionários públicos e familiares, crianças até aos 22 anos, grávidas, pacientes com doenças infetocontagiosas, oncológicas, psiquiátricas, presos… não pagam. Ficam de fora trinta a quarenta por cento.» O que falta, então? Investimento.

Estamos, literalmente, na árvore das patacas. Os casinos geram receitas astronómicas. Só no primeiro semestre deste ano foram perto de 14 mil milhões de euros – e, mesmo assim, com uma quebra de 37 por cento face ao período homólogo do ano passado. Um valor seis a oito vezes superior ao de Las Vegas.

«Podia e pode fazer-se muito mais» com tanto dinheiro, diz o médico. Deveria abrir neste ano um novo hospital na zona dos casinos de Cotai – um admirável mundo novo da construção civil, com direito a Batman e Torre Eiffel – e faltam médicos em especialidades como cirurgia vascular e cardiotorácica. Porque se em 1999 a população não chegava aos quatrocentos mil, «hoje já chega aos 680 mil», diz Fernando Gomes.

Um nicho para os clínicos e enfermeiros portugueses. Mas também para advogados, arquitetos, professores. Mas apenas se consolidado, estruturado. Se é certo que houve um aumento da procura por volta de 2013, a mesma parece agora estar estabilizada. As regras para atribuição de um bilhete de identidade de residente apertaram. «Informem-se antes de vir», alerta o cônsul-geral de Macau. «Venham com contratos assinados.»

«Muita gente veio a correr pensando que era muito fácil», diz Amélia António. «As condições são difíceis há bastante tempo, não se arranja trabalho de um momento para outro.» Aliás, muitos são os portugueses que batem à porta da Casa de Portugal de Macau, que conta com mil associados e cerca de trezentos amigos (sem nacionalidade portuguesa), a pedir informações. A José Pereira Coutinho muitos pedem ajuda para encontrar casa, o verdadeiro calcanhar de Aquiles.

Pereira Coutinho é mais um macaense filho de portugueses de Goa. Cruzámo-nos no consulado. Tinha como destino Toronto, onde tem a mulher e os filhos. Formado em Direito, é o único deputado português eleito, por sufrágio direto, à Assembleia Legislativa, pela lista Nova Esperança, que fundou há alguns anos. «Somos respeitados aqui e de que maneira. E não há dinheiro que possa dar essa satisfação.»

Uma das mais fortes marcas da presença portuguesa no território está na cozinha. Em Macau, e na ilha de Taipa em particular, tropeçamos constantemente em restaurantes que servem comida tradicional portuguesa. Só por isso não estranhamos comer feijoada, cebolada de fígado, bacalhau e leitão a mais de dez mil quilómetros de distância. E com a humidade a passar os 95 por cento. De miniventoinha na mão, lá vai uma isca ou uma dobrada…

Às 18h30 de um dia de semana, para cima de vinte pessoas aguardavam mesa à porta d’O Santos, que em 2014 virou notícia por ter servido Mick Jagger, o vocalista dos Rolling Stones. A fama do restaurante veste-se de vermelho, como o próprio faz questão de evidenciar ao mostrar o cartão de embaixador do SL Benfica. É ali, na movimentada Rua do Cunha, que aportam os adeptos do clube. Mas também há um cachecol do FC Porto e do Boavista, com um apito dourado no meio. Há 32 anos em Macau, Manuel Pinto Santos está há 27 naquela casa.

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Manuel Joaquim Pena 

Manuel Joaquim Pena tem mais algum tempo em Macau – 35 anos contados. Deixou Portugal rumo a Angola e chegou a Macau nos anos 1970 para trabalhar na Pousada de Coloane, a outra ilha de Macau, a mais intocada. Abriu o restaurante Manel há 25 anos. E não pretende regressar. Natural de Trancoso, onde vai «todos os anos para as vindimas», diz que hoje «Portugal nem para reformado serve; é bom para ir passar férias». Em parceria com um sócio japonês, inaugurou quatro restaurantes no Japão. Aqui, mas com menos intensidade, as paredes revestem-se a verde, do Sporting.

No António não há clubes. Há um grande retrato do próprio. Trajado a rigor e de medalhas ao peito, recebe-nos, amargurado com Portugal, ou com os políticos de Portugal, onde tem um filho – a filha está em Angola. De Fornos de Algodres, António José Neves da Conceição Coelho partiu para a Lisboa e daí para Macau, contornando o ultramar. Apesar da amargura, garante que «85 por cento dos produtos que serve são portugueses», da sardinha ao bacalhau, passando pelo azeite, vinho e frango. No vinho, tem produções próprias das quintas de Melgaço, Romaneira e Herdade São Miguel. «Pensionista de Portugal», como faz questão de dizer por causa dos anos que trabalhou no Ministério da Saúde, garante que, a ir para algum lado depois de Macau, será para as Filipinas, de onde é natural a quarta mulher.

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Ivo Benídio

Sem amargura e à descoberta do mundo está o portuense Ivo Benídio. Tem apenas 25 anos e já trabalhou com os chefs Sergi Arola (duas estrelas Michelin) e Antoine Westerman (três estrelas). Do Qatar a Inglaterra, passando pelo Brasil, com três anos de formação pelo meio – dois na escola de Turismo de Santa Maria da Feira e um na do Estoril.

«Sempre tive interesse em vir para Macau», diz Ivo. «Mesmo quando estava a estudar. Só que com o sistema de quotas que funcionava na altura, e como a minha posição era baixa, era difícil conseguir vir. Decidi ir para outros sítios primeiro até surgir a oportunidade de trabalhar no Casino MGM.» Num negócio crescente como é o do jogo no território, trabalhar num casino pode ser, literalmente, a sorte grande. Sobretudo em termos financeiros. «Temos as hipóteses todas para criar diferentes tipos de cozinha. Mas o cliente está focado no jogo e em 15, 20 minutos termina uma refeição. Não querem perder tempo.»

Entre o Oriente e o Ocidente, Ivo tem um mapa por descobrir. Pertence àquela «camada mais jovem», como lhe chama Amélia António, que ainda «está a ver como evolui». Os mais jovens, explica a presidente da Casa de Portugal, podem não estar a trabalhar nas «condições ideais, mas estão a fazer o que gostam». Uma diferença de peso: «A vantagem aqui, mesmo não estando melhor, é que estão na área em que se formaram e a criar condições para progredir na carreira.»

Para os que já vão a meio da viagem, Macau será sempre «essa terra fascinante que consideramos também nossa, com um arreigado sentimento de presença», como dizia Senna Fernandes. Para os que já vão a meio da viagem, a âncora jamais sairá das águas do delta do rio das Pérolas.