Japão elege a sua primeira meia-miss

Notícias Magazine

Ainda antes de a ver já a sabia linda. Claro, também pelo argumento de autoridade, sempre era uma miss, mas comecei por gostar do nome, Ariana Miyamoto. Um festival de vogais, que, por definição, são as letras livres. Pelas vogais, o ar passa sem traves. Ariana Miyamoto, uma equipa de ases, quatro «as», que são a vogal mais aberta, e dois soberbos «os», arredondados e suaves. Ela, eu dis­se-me ainda sem a ver, deveria estar à janela, daquelas de portadas de ripinhas, que se abrem abrindo os braços e se encosta à parede por uma ferragem de latão em forma de colcheia de pauta. Haveria ain­da um balcão com flores de cerejeira, sakura. E não me perguntem como elas foram parar ao balcão, o que eu quero é pôr Ariana Miya­moto, com a moldura certa, no lugar onde o mundo a veja.

Na semana passada, Ariana Miyamoto foi eleita Miss Ja­pão, e é primeira hafu a sê-lo. No Japão, o termo designa os mesti­ços, vem do inglês half, metade. A mãe de Ariana é japonesa e o pai negro americano. Digo isso caso alguém esteja interessado em co­nhecer-lhe a genealogia. Eu, tirando a oportunidade do piropo («bendita a mãe que te fez»), não quero. Já os japoneses não que­rem outra coisa. O Japão é uma sociedade muito homogénea, mais de 95 por cento da população são originários do arquipélago, daí a surpresa por serem representados por uma hafu. Diz o correspon­dente em Tóquio do jornal Libération que alguns comentários su­blinham a «meia-tristeza» por, neste ano, haver uma «meia-Miss Japão».

Os últimos tempos têm sido cheios de surpresas para essa banalidade que é a viagem das raças pelo mundo. No mês passado, um Iñaki, nome tão basco, entrou para a história porque foi o pri­meiro negro a marcar um golo pelo Athletic de Bilbau, o mais re­presentativo clube basco. Parabéns à prima, mas há já 80 anos, na década de 1930, o benfiquista Guilherme Espírito Santo, negro e lisboeta, só não foi o maior marcador em dois campeonatos por­que este mundo é mesmo muito redondo. Veio de África um bran­co, o sportinguista Fernando Peyroteo, e foi este o maior goleador. Nestas décadas todas, quantos portugueses inteiros e negros mar­caram golos?

Espírito Santo e Peyroteo eram rivais de clube e na con­quista do lugar de avançado-centro da seleção portuguesa. Quan­do, em 1938, a seleção partiu para Frankfurt onde iria jogar com a Alemanha nazi, o lisboeta negro e o branco angolano fizeram questão em ficar na mesma carruagem-cama do comboio. Ti­nham-se conhecido em Luanda e eram amigos. Há factos assim, naturais, que levam a comparações: nessa mesma Luanda, a angolana mestiça Leila Lopes foi eleita em 2011 Miss Angola, sem escândalo nem “meio” nada, só Miss Angola. Meses depois foi eleita Miss Universo, o prémio para que concorre agora a japonesa Aria­na Miyamoto. Um, país do topo de tudo no mundo, o outro, país do Terceiro Mundo – ele há índices que não existem e talvez revelas­sem valores determinantes para a vida de todos os dias.

Dou-me conta de que a minha escola primária São Tomás de Aquino, Luanda, com negros, mestiços, brancos e indianos, não ti­nha ginásio. Mas já tinha um índice (enunciado na frase anterior) tão moderno… A minha escola com rua de terra vermelha (os tremunos, jogos de futebol, eram feitos aí, os carros abrandavam), estava aber­ta para futuro como uma janela de flores de cerejeira. Um dia, mui­to mais tarde, conheci em Lisboa um mestiço que vestia de fato e co­lete. Era luandense, diretor na Gulbenkian, e os ventos da história ti­nham-no varrido da sua pátria. Era poeta, chamava-se Mário An­tónio (ficou esse porque assinava assim, o nome completo tem ainda Fernandes de Oliveira) e pôs uma medalha num título sobre a sua cidade: «Luanda, Ilha Crioula». Traduzido em japonês seria «Luan­da Hafu», Luanda metade isto e aquilo… Mário António, que morreu em 1989, num poema diz «Mar/ Nosso caminho/ Nossa es­trada…» Ele gostaria de saber que chegámos finalmente a Tóquio.

[Publicado originalmente na edição de 22 de março de 2015]