Homenagem às camisas de Macau

Notícias Magazine

Avisam e convidam-me: «Atenção, esta edição da Notícias Magazine é sobre moda, não podes escrever também sobre o assunto?» Calha bem, pode dizer-se que sou um expert. Não sem razão, sou pied-noir como Yves Saint-Lau­rent (ele de Orã, eu de Luanda, brancos de África) e fomos com 20 anos viver para Paris (ele, na década anterior, meados dos anos 1950, eu, nos finais de 1960). Para ambos foi decisivo o papel da mãe. Foi Lucienne Wilbaux que deu o gosto pela moda e pela estética ao seu filho YSL – que ainda não tinha as ini­ciais entrelaçadas. A influência da minha mãe foi mais controversa. Quando eu tinha 5 anos, ela fez-me um fato de banho em tecido turco, às pintinhas de onça, com um colete do mesmo padrão. Por aqueles dias de março quente, a minha cidade vivia um torneio de luta-livre. O cartaz, muito espalhado, mos­trava uns calções também às pintinhas de um dos lutadores – o espanhol Sa­ludes, o grande Lobo da Costa, El Índio, El Greco?, já não me recordo – e a se­melhança de vestes levou-me à identidade comportamental: na praia, desatei à chapada aos outros miúdos.

Fashion, sou especialista – disse acima. Não me quero gabar mas há uma característica da moda, mais importante ainda do que o estilo, falo da ca­pacidade de anunciar o que vem aí, onde a minha ação compara-se ao papel inovador de Coco Chanel com os cabelos curtos à garçonne e de Mary Quant com a minissaia. Quem me conhece sabe da campanha antiga que travei por um acessório fundamental do vestir masculino. Estudei-lhe as origens anti­gas, chegou à nossa Europa com os hussardos croatas, na Guerra dos Trinta Anos, testei-lhe a textura, de seda, lã e até couro, compus-lhe a forma, o nó Windsor, o Cavendish, o Balthus…

Falo da gravata, evidentemente. Eis uma peça do vestuário que não inventei, não sou tão antigo, mas que teve em mim um divulgador numa sur­preendente vertente: quase nunca a usei. É uma forma de propaganda eficaz, a publicidade pela ausência (Sartre é tão conhecido por não ter ido receber o Prémio Nobel como por ser vesgo). Pois depois de tanto ano com a minha inusitada campanha pela gravata, apareceu um correligionário que me usur­pou a glória. A não-gravata é hoje conhecida como à Varoufakis! Bem feito, eu devia ter tirado a patente.

No ano passado, julgo que pelo outono-inverno, a Notícias Magazine também sugeriu que eu sujeitasse o meu tema à moda. Confessei, então, que o meu problema com a moda nem era tanto o meu mau gosto, mas a notória ine­xistência de gosto. Tenho a declarar que continuo com essa qualidade. Não te­nho, claro, o pé esquerdo de Messi, mas se um dia ganhasse uma Bola de Ouro era capaz de ir receber o prémio com um casaco igual aos do argentino. Ou cor de vinho ou recuperado no estampado dum sofá, sou um canhoto a vestir. E sei donde me vem o espalhafato: duma adolescência de camisas banais. Melhor, duma camisa banal, duas ou três gavetas da mesma, simples e sempre igual. A camisa de Macau. Na minha cidade, Luanda, do governador-geral ao engraxador – com exceção do secretário provincial da Educação, Pinheiro da Silva, um mestiço de Cabinda que usava fato e colete e chapéu à Fernando Pessoa – todos vestiam a mesma camisa de Macau.

Chamava-se assim por causa da sua única característica exótica: donde vinha. Quanto ao mais era de algodão e branca, com um debruado discreto nas mangas curtas, dois bolsos, para o maço de cigarros e lapiseira, e boa de andar fora das calças. Vinte anos depois da minha adolescência, conheci cidades intei­ras chinesas vestidas com essa camisa – incluindo os incipientes patrões que fa­ziam as coloridas marcas falsas mas não as usavam. Quarenta anos depois da mi­nha adolescência, eu uso casacos e camisas espalhafatosas por reação dialética aos patrões chineses que vestem camisas feitas à mão em Savile Row, Londres, e aos operários chineses que já não vestem as simples camisas de Macau.

[Publicado originalmente na edição de 19 de abril de 2015]