Fronteiras

Notícias Magazine

Tenho de confessar que da primeira vez que pensei em fronteiras foi com desejo de as invadir. Felizmente eu não era um rapazinho alemão do fim dos anos 1930, senão partia montado num Panzer. Eu usava um castor na cabeça como Daniel Boone, matava bisontes como Buffalo Bill e fazia de pisteiro nas Montanhas Rochosas como Kit Carson e, em qualquer dos casos, montava um palomino, cavalo dourado. Este pormenor era importante. Às vezes, quando me dava saudades de casa, pela tardinha, eu virava-me na sela mas o palomino seguia os raios brilhantes do sol poente, talvez convencido de que a sua veste precisava de mais uma demão de ouro. E eu deixava-me ir pelo Oeste selvagem fora.

Esta ânsia de contrabandista pelas terras dos outros era um bocado estranha em quem foi educado na casa de meu pai. O meu pai tinha um respeito exagerado pelas fronteiras. Na Segunda Guerra Mundial, sozinho, ele meteu-se no camião pelos 800 quilómetros de picadas de Luanda até Brazzaville, a capital do Congo francês, onde comprou um relógio. Pois, esse branco, em anos de guerra, na África colonial e com um camião, atrapalhou-se a esconder um relógio para atravessar a fronteira.

Pensei nisso quando, em 1969, atravessei o Minho de barcaça e a fronteira de Irún para França sem documento que o permitisse. Conheci o meu primeiro passaporte legal aos 26 anos, o que não impediu, entretanto, alguns saltos por mais duas ou três fronteiras. O que nem exigia grande arte, a Europa desse tempo empurrava as pessoas para viajar – antes de Schengen já as fronteiras europeias, por interesse, eram permeáveis. E chegamos com este largo introito ao que aqui me traz: fronteiras. Paremos, como a palavra pede.

Já não sou o mesmo miúdo do Oeste selvagem, continuando, porém, a sê-lo. Ser Kit Carson é ter de subir a uma árvore para fugir dum urso-cinzento – e, muito importante, sobreviver a isso para escrever (enfim, ditar, pois era analfabeto) as Memórias. Ser Carson é ter participado nas expedições de John C. Frémon que me permitiram, cento e tal anos depois, atravessar os Estados Unidos. Carson é isso, essa corda nos sapatos que leva alguns a irem daqui para ali, construindo a história. Entretanto, aqui e ali, Carson é o sitiador de apaches, dando aos seus a ordem de matar todos os homens e prender mulheres e crianças. Hoje, gosto e não gosto de Kit Carson. Genghis Khan, que parece ter sido o homem que mais gente semeou pela Terra, também contrabalançou esse muito procriar com um também grande arrasar. Mas sei que devo mais a esses dois filhos do vento do que ao pacífico camponês que ficou, com a tribo, a guardar a sua coutada.

Escrevo isto na semana em que a Europa voltou a fechar as suas fronteiras. Que marcha-atrás! Não argumento contra as razões, algumas talvez oportunas, que levaram a isso. Sublinho só o desperdício de progresso. E não quero utilizar a mole de gente que vinda de fora – por formas ilegais mas razões legítimas (certamente maiores que as minhas quando andei a passar fronteiras) –, não quero, porque essa questão está inquinada. De um lado, por causa da cultura ancestral dos camponeses que defendem a sua coutada; do outro por causa da compaixão moderna que se expressa com likes no Facebook. Muita daquela gente que nos entra hoje pelas fronteiras – ah, aquele olhar febril do homem com o filho às cavalitas, numa gare de Budapeste, levantando o deixa-passar que é toda sua esperança… – não cabe nesta discussão, está acima dela.

Então, trago este elogio da mistura sem mencionar os novos chegantes. Quem me dera uma Europa que deixe de ser o inferno definido por David Frost (com algumas achegas minhas): onde as piadas não são suecas, os polícias não são alemães, os cozinheiros não são ingleses, os governantes não são gregos, os governados não são portugueses, os soldados não são italianos e a língua não é o holandês. Temos de retomar o caminho que nos ajudava a limar essas arestas.

[Publicado originalmente na edição de 20 de setembro de 2015]