Feminismo em tom pop

Já não se queimam soutiens, mas nem por isso a luta das mulheres pela igualdade encontrou tréguas. Agora, as armas são outras: a música pop. Algumas das mais mediáticas artistas da atualidade encontraram uma causa comum nas suas canções e atitudes. E o tema voltou a estar na moda.

Feminismo. Julgava-se que a palavra estava extinta. A pa­lavra e a atitude. Longe vão os tempos das sufragistas dos anos 20 do século passado, dos ícones da libertação sexual dos anos 60, das grandes autoras do movimento – Betty Frie­dan, Gloria Steinem, Simone de Beauvoir, Germaine Greer, Erica Jong, Susan Sontag e até Camille Paglia, cuja prosa raramente envelhece. Em junho de 1998, a Time, a re­vista de maior circulação planetária, chegou mesmo a interrogar, em tom fúnebre: «O fe­minismo está morto?», com a fofinha e sub­missa personagem Ally McBeal (a atriz Ca­lista Flockhart) como derradeiro elo da ca­deia de emancipação feminina.

Ora, o último ano e meio provou que as no­tícias da morte do feminismo eram manifes­tamente exageradas. Têm sido meses revo­lucionários, em que a palavra – e, outra vez, a atitude – perdeu grande parte da carga ne­gativa, do hate speech (o discurso do ódio), da mera oposição ao modelo de sociedade pa­triarcal, ou mesmo da indispensável busca de equidade entre os sexos. O novo feminis­mo, «o feminismo pop», transcende as bar­reiras da luta pelos direitos da mulher e as­cende à afirmação de uma identidade de gé­nero que não precisa de homens para existir, por diferença ou oposição. A maioria destas mulheres não luta contra o domínio mascu­lino – sente que já lhes ganhou.

Os sinais da nova força, jovem como as suas protagonistas, começaram em 2013. Jennifer Lawrence, a atriz de The Hunger Games: Os Jogos da Fome ou Golpada Ameri­cana, diva trapalhona de 24 anos (lembram-se do tropeção nos Óscares?), dona de gar­galhada ruidosa e de corpo belamente re­chonchudo, respondeu numa entrevista à Harper’s Bazaar britânica que «se alguém sequer tentar sussurrar-me a palavra “die­ta”, eu digo-lhe para se ir fod…». As rapari­gas do mundo inteiro agradeceram e, quase ao mesmo tempo, Beyoncé Knowles, bom­ba nuclear de ignição sexual e ídolo supremo das adolescentes, proclamou à Vogue que era «uma feminista contemporânea. Porque te­mos de nos reduzir a uma etiqueta? Sou mu­lher e orgulho-me disso».

Os manifestos de independência não fo­ram apenas ocidentais. No hemisfério on­de os problemas se agravam, Mallika Shera­wat, reconhecida atriz de Bollywood, arra­sou uma entrevistadora indiana quando esta a desafiou a fundamentar a acusação de que o seu país era «deprimente e regressivo», pou­cas semanas após o CBI, a força de elite da in­vestigação policial indiana, ter defendido que, «se as violações de mulheres não podem ser prevenidas, que sejam desfrutadas». She­rawat ripostou: «Acha que devo mentir so­bre a situação das mulheres na Índia? Sobre as violações coletivas, o infanticídio, os as­sassínios de honra?» A repórter calou-se. Foi também o ano em que a notável Malala You­safzai, a mais jovem Prémio Nobel da Paz de sempre (16 anos), sobreviveu à violência mas­culina paquistanesa para fazer um extraor­dinário discurso nas Nações Unidas, em ju­lho, três meses antes de arrecadar o prémio.

Já em setembro de 2014, outra jovem atriz, Emma Watson, faz nova intervenção histó­rica na ONU. Nomeada Embaixadora da Boa Vontade das Nações Unidas, a Hermione de Harry Potter assume um discurso de anto­logia, apelando à participação de cem mil homens na campanha «He For She». Eles ouvem: o cantor John Legend já afirmara ser «feminista», e figuras másculas como Edward Norton ou Joseph Gordon-Levitt produzem vídeos e fotografias a declarar, orgulhosos, o mesmo.

O movimento espontâneo alastrou às pla­taformas mais improváveis. Frozen, o blo­ckbuster de animação, marimbou-se para a clássica misoginia dos estúdios Disney e con­sagrou uma heroína que canta «Estou sozi­nha mas livre!», enquanto um grupo de pres­são feminino conseguiu limitar as piadas so­bre violações no Facebook e terminar com a censura desta rede social às imagens de mães a amamentar. De súbito, as princesinhas bem comportadas da pop começaram a gri­tar aos sete ventos o seu feminismo, acusan­do a indústria discográfica de «manipular e trivializar as mulheres» (o caso de Taylor Swift numa entrevista ao The Guardian), ou, de uma vez por todas, decidiram despirem-se de preconceitos (e de roupa, caso da leve­mente tresloucada Miley Cirus, que come­çou a lamber materiais de construção).

Os críticos do «feminismo pop» – a come­çar de novo pela revista Time, que defendeu já este ano, de forma provocatória, a proi­bição da palavra, por temer a sua banaliza­ção – consideram incompatível um discur­so emancipatório com a imagem de «objeto sexual» consagrado pelas autoras recentes desse discurso, como Beyoncé, Miley Cirus, Lady Gaga ou Rihanna. Intérpretes da esta­tura de Annie Lennox ou Sinead O’Connor reagiram com grande violência ao «pseudofeminismo» de Cirus, Rihanna e Swift, acu­sando-as de perpetuarem a imagem de mu­lheres-objeto, ao serviço de uma indústria machista e de um público masculino e erotizado. Mas à Time, Annie Lennox, Sinead O’Connor e outros detratores parecem não estar a prestar atenção aos sinais.

Em contraponto ao duvidoso Blurred Li­nes (disco e videoclip) de Robin Thicke – on­de, como o próprio nome indica, se questio­na a fina fronteira entre abuso sexual e livre consentimento –, Beyoncé surgiu nos últi­mos MTV Video Music Awards com uma performance de 16 minutos sob um gigantes­co néon com a palavra «Feminist» em letras garrafais, tornando a postura não apenas política como imensamente hip – é preciso lembrar que, se Beyoncé utilizou o nome do marido, Jay-Z, outra estrela planetária, pa­ra designar a nova tournée, «Miss Carter», Jay-Z adotou, numa rara iniciativa, o apeli­do da mulher depois de casarem… Em Fla­wless, ao lado de Nicky Minaj (outra que tal), Beyoncé canta um novo slogan dos tem­pos, «I Woke Up Like This», e a mensagem é: quem não quiser mulheres assim, que vá procurar para outro lado.

Em simultâneo, o videoclip de Blank Space, o mais recente êxito de Taylor Swift, apre­senta apenas mulheres, num crocante conto de fadas feminista, e mesmo o teledisco Pour It Up, da polémica Rihanna – muito critica­da nos media por ter aceitado de volta o na­morado Chris Brown após um caso de vio­lência doméstica – no qual a caribenha pra­tica a dança do varão num clube de strip onde não existem homens à vista, deve ser lido co­mo um gesto de controlo de mente e corpo. Como se sussurrasse: «Eu danço para mim, porque me apetece; aqui, menino não en­tra.» Todas elas são símbolos de uma decla­ração de género que exibe o sexo, já não co­mo arma de arremesso contra o inimigo (os homens), mas como sinal de confiança. Ou de indiferença, a derradeira marca da liber­dade. O princípio significa que as mulheres podem – e devem – ser tudo o que lhes der na gana, incluindo companheiras extremosas ou dançarinas de varão (ou ambas).

Entretanto, as marcas de roupa com «de­clarações de género» têm aumentado todos os meses, numa postura já designada de «Va­gina Pride» – o Orgulho da Vagina. Não se tra­ta de uma atitude erótica. É antes a assunção de que o corpo feminino é todo ele belo e mo­tivo de orgulho, mesmo nos piores dias. As nova-iorquinas usam tops doirados da artis­ta local Sophia Wallace com a inscrição «So­lid Gold Clit» («Clitóris de Ouro Maciço»). A American Apparel massifica T-shirts com o desenho de uma mão feminina a acariciar um clitóris enquanto corre o sangue do perío­do. E Rihanna ou Beyoncé – ainda e sempre – agitam o street wear envergando blusas de slo­gans como «Cunts» ou «Sleep With Whome­ver You Want». O tema já chegou à academia: a Universidade do Texas anunciou que lan­çará uma cadeira semestral na primavera de 2015 dedicada ao tema «Beyoncé Feminism, Rihanna Womanism». As vagas esgotaram, e quem não gostar que se afaste. O «feminismo pop» parece ter chegado para ficar.