Fado adocicado

Cuca Roseta tem um novo álbum. Riu, o disco da maioridade da fadista, chega às lojas no dia 18 e contou com o produtor brasileiro Nelson Motta. A Notícias Magazine esteve nos bastidores desta viagem musical entre dois países.

Chegamos aos estúdios Atlântida e somos levados para uma gigante e opulenta sala de gravação, onde Cuca Roseta faz nascer o seu terceiro álbum, o da afirmação. Há uma calmaria nos técnicos, nos músicos e no staff da cantora que não esperávamos. Ouvimos algumas das músicas de Riu e percebemos que naquele estúdio há luz verde para um território de experimentação. Silêncio que aqui se experimenta fado! A experiência vem, claro, do produtor e ideólogo deste disco, o afamado Nelson Motta, produtor musical brasileiro mítico e grandessíssimo escritor de canções.

Estar assim num estúdio de gravação onde as canções nascem é uma oportunidade rara de testemunhar um ato de criação. Olhar para Nelson Motta e conferir no seu olhar que está ali a ser construído algo de novo. Não é a primeira vez que o fado chega à música popular brasileira, mas com esta perícia talvez seja. Talvez, talvez… No final do ano passado, quando visitámos esta gravação, ainda faltava muito para o Riu ficar pronto. Faltava a ida de Cuca ao Rio, onde se gravaria o segundo tomo de uma obra que cruza Portugal e o Brasil, a guitarra portuguesa e outros ritmos tropicais. Quando ouvimos Primavera em Lisboa, tema escrito por Ivan Lins, sentimos o espírito de fusão, sentimos aquilo que Motta quis fazer.

É Cuca quem nos diz que este disco nasce de uma relação com Nelson Mottta que começou como profissional e depois desembocou em amizade pura: «Ele é um papa da música, adoro-o! E tem muito prazer em revelar-me canções, mesmo algumas que nada têm que ver com o espírito de Riu. Esta nossa boa relação, creio, vai passar para o disco.»

O ambiente é de astral positivo, muito para cima. Nada que se compare ao que vimos no documentário de Bruno de Almeida, Fado Camané, em que se mostrava o fadista português em estúdio enquanto gravava sob a alçada rigorosa de José Mário Branco Sempre de Mim. «Estou mais calma agora do que das outras vezes que fui a estúdio. Aprendi que não vale a pena ficar stressada. É preciso haver boa energia. Uma intérprete tem de estar bem e é importante ainda que se estabeleça uma boa energia entre os músicos. Acredito que não podemos estar a pensar no tempo ou que temos de gravar à pressa porque o estúdio é caro. Isso pode estragar um disco… Se a música não ficou bem, há que tentar fazer melhor. Às vezes, as coisas não saem logo…», reforça a fadista, frisando que cada dia é um dia: «Há dias em que a voz está ótima, outros não. Por exemplo, hoje estou um bocado condicionada. Estive meio doente…»

Riu é um disco, na verdadeira aceção da palavra, luso-brasileiro. Nelson Motta promete que é o trabalho que vai fazer de Cuca Roseta uma estrela no Brasil. «É para estourar no mundo inteiro», avisa. «Sou louco, sempre fui, pela Cuca! Ela é incrível.» Acreditamos, sobretudo porque essa admiração fez que deixasse um retiro de muitos anos (passaram onze desde a última vez que tinha entrado num estúdio para produzir, nesse caso o disco ao vivo de Daniela Mercury). Só mesmo por esta cantora portuguesa seria capaz de regressar e agora exulta com o «comeback», conforme deixa escapar num post no Facebook. «Tinha de ser especial para regressar… Fiz isso tanto tempo e há uma dada altura que cansa, sobretudo a rotina… Vou confessar: nem pensava voltar mais alguma vez a um estúdio para produzir! Nossa, agora estou gostando muito! Mas, claro, tudo é novo para mim: o universo do fado, a aprendizagem. Estive trabalhando neste conceito desde que a ouvi pela primeira vez no filme do Carlos Saura, o Fados. Este disco não foi encomenda coisa alguma! Foi antes uma conspiração a favor», conta enquanto olha para a chuva lá fora.

DE VOLTA À CABINA DE SOM, olhamos para Motta em ação. É um produtor atento, um homem obstinado. Dizem-nos que tem um ritmo forte. Tem gravado duas músicas por dia – a sua estada é curta nesta fase. Do que ouvimos, percebemos que o disco tem fado, mas tem também muito mais. Os puristas vão aos arames? Depois das experiências de outros fadistas e do «som» António Zambujo, talvez nem tanto. «A Cuca, como qualquer outro grande artista, não podia ficar confinada apenas à sua “aldeia”.» Quem o diz é o próprio Motta, que admite ter feito um estudo intuitivo sobre fado, sobre o fado de que gostava. Afirma não querer saber dos puristas, mas sabe que o fado em Portugal é tão sagrado como o samba no Brasil. Porém, ressalva: «Afinal, no mundo da música nada é bem sagrado. É isso que mantém a música viva, essa constante renovação. O fado é tão sólido que nada pode abalá-lo! Sempre haverá a cultura tradicional do fado. Sinto que é impossível fazer melhor do que aquilo que já está feito. Logo, o melhor é fazer diferente…» A ideia deste disco é essa: pegar em temas italianos, brasileiros e espanhóis e dar-lhes a voz de Cuca. Há quatro ou cinco canções brasileiras que são transformadas em fado. «Quero que a Cuca cante essas canções com fado!», diz o produtor. «Há só um tema que ela vai cantar com sotaque brasileiro…».

Os nomes que povoam as canções deste disco inspiram respeito: além de Lins, Zeca Afonso, Djavan, Casimiro Ramos, Dorival Caymmi, João Gil, Júlio Resende, Bryan Adams, Sara Tavares , Mário Pacheco, o oscarizado Jorge Drexler e a própria Cuca. Cuca que não acusa o nervosismo. Está no estúdio como quem está em casa. Há um momento em que se abraça a Motta e a ternura entre os dois é pura, nada convulsa. É bonito. Mais tarde, Motta e a fadista escutam uma das canções. Ficam atentos. Entretanto, chega o mestre Pedro Castro, o craque da guitarra portuguesa que não perde tempo e começa a preparar o seu instrumento. Todos são eficientes. O tempo ali é precioso. Continuamos a ouvir o tema de Lins, enviado uns dias antes. Não estava escrito. Um dia depois, Motta deu-lhe uma letra. Foi, segundo dizem, caído do céu… O tempo passa e tudo fica perfeito.

Há um outro guitarrista que grava por cima da música. Os técnicos dizem que se sente um batimento, termo técnico quando o som fica muito em cima da canção. Não se distingue ao ouvido comum, mas é este o grau de exatidão técnica nesta altura. Miguel Capucho, o agente de Cuca, acredita que é o disco mais importante de Cuca: «É o nosso disco de paixão, com tudo o que a Cuca sempre quis fazer.»