Esta é uma espécie de descrónica

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Pendularmente, edição sim edição não, a revista semanal brasileira Veja é boa, publica a coluna quinzenal de Roberto Pompeu de Toledo. A última falou desse extraordinário prefixo des que espelha, faz ver ao contrário, o mundo das palavras. Dias antes, eu publicara uma crónica com a canção de Chico Buarque, Apesar de Você. Citei-a pelo «apesar» do título, para o pôr em contraponto com a declaração infeliz dum nosso político, tropeçador nato em palavras. Já o brasileiro citou a canção por causa de três versos («Você, que inventou a tristeza/ Ora tenha a fineza/ De desinventar»), para ilustrar esse «desque traz em si a atração anarquista de pôr o mundo de cabeça para baixo». Como veem, simples coincidência, talvez até uma descoincidência, mas fez-me mergulhar na crónica ainda com maior prazer, igual ao que me fez um dia entrar num bar de Madrid porque tinha este cartaz: «Hemingway nunca esteve aqui.»

A crónica de Pompeu de Toledo nascera do recente feriado de 21 de abril, de homenagem a Tiradentes. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro celebrara o julgamento do nacionalista brasileiro numa cerimónia a que chamou «desenforcamento de Tiradentes ». O cronista deu corda à ideia, desenterrou palavras inovadoras, como a tal desinventar de Chico Buarque, passou à despatriada do poeta Mário de Andrade e desaguou no desnormalizado Guimarães Rosa, pai de destriste, desfeliz e outros desfalares com que desempobreceu a nossa língua (ao distraído: desempobrecer é elogio). O livro O Léxico de Guimarães Rosa, de Nilce Sant’Anna Martins, regista 230 palavras com esses des. O meu dicionário de José Pedro Machado dedica-lhes 154 páginas a duas colunas, de desabado a deszelar. Se talvez nunca houve Prémio Nobel tão curto,já os houve menos interessantes – basta dizer que Livro do Desassossego, de Pessoa, cabe lá, no mundo ao contrário dos des.

Guimarães Rosa mandava longas explicações aos seus tradutores, só ao italiano Edoardo Bizarri escreveu 72 cartas. De vez em quando o tradutor empancava numa palavra e lá implorava por caminhos. Essa situação, de derrota não derrotada, podia ser traduzida por uma palavra que, no entanto, desconheço ter sido alguma vez usada por Guimarães Rosa: desconseguir. Que também não está em nenhum dos meus dicionários. E, no entanto, é de meu uso e dos meus patrícios luandenses. «Já fizeste aquilo que pedi?», perguntam-nos. Há duas respostas possíveis (afasto a terceira, «já», inverosímil, porque vai contra um hábito nosso, procrastinar) e a primeira é: «Ainda.» Quer dizer que não está feito e não estamos muito inclinados a fazê-lo. A segunda resposta, e mais comum, é: «Desconsegui.»

É um «não consegui» desfalecido, quer dizer cansado mas ainda não bem, bem, falecido. Tipo, fui lá buscar a coisa, mas a Josefa parou-me para pedir as horas, aí falei mais que «é dez pra uma», a Josefa perguntou-me se sábado ia no baile, então, adiantei mais conversa e, quando cheguei lá, a farmácia estava fechada. Desconsegui. Mas mais logo vou lá, juro. O facto é que Bizarri, apesar das noites desdormidas, fez as melhores traduções de Guimarães Rosa e quem precisa dos remédios, paciência, há de desmorrer.

Reparem na última palavra. Desmorrer já está no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, que a define assim: «v. intr., Estar quase a morrer e restabelecer-se.» Eis uma das forças do movimento lexical des. O problema com as palavras clássicas é que são demasiado definitivas. Não têm em conta as Josefas que se nos atravessam no caminho nem as múltiplas cores da paleta da vida e da morte. Morre-se e acabou, dizia-se. A palavra morrer não podia voltar atrás, perdia a face, por isso criou a pouco credível ressuscitar… Felizmente, apareceu o desmorrer que, com as suas meias-tintas, reconhecendo que se pode estar muito ou pouco grávido de situações que nos diziam poderem ser só sim ou sopas. Tudo é desirrevogável na conversa humana.

[Publicado originalmente na edição de 10 de maio de 2015]